domingo, 31 de julho de 2005

O homem da carreira 95

Sentou-se a uma mesa e num canto de um qualquer papel, como se de súbito, já tinha escrito. Chegara de uma viagem, e como se a escrevesse, de súbito tinha regressado. Havia naquela escrita a ilusão da presença. Sentou-se a uma mesa e como se a um canto, escreveu a ilusão de uma vida súbita, vivida em papel.

sábado, 30 de julho de 2005

O homem impossível

E depois nem o autocarro chegava, nem ninguém ali aparecia para o apanhar. E, no entanto, o homem, transeunte ocasional daquele instante, ria-se para dentro do jantar de onde viera, como se de um compromisso ingrato já cumprido. A noite estava fria e com ela a lembrança do casaco que a sua teimosia lhe fizera não trazer. Um homem sem casaco numa noite gelada numa solitária paragem de um autocarro que não vinha. Um livro, um jornal, algo que fizesse de momento companhia ou fosse ao menos um entretém, porque às noites os autocarros que não passam nas paragens onde ninguém os espera nunca se sabe a que horas do acaso poderão sequer surgir. Sentando-se e levantando-se e passeando-se inconstante para aquecer o homem esfriado do casaco que não trouxera para o jantar que não lhe apetecia deu de repente conta de si. Era noite alta, e naquele bairro sombrio de luzes minguadas e recantos duvidosos não haveria outro transporte do que a pé, outro destino se não esperar. Foi ali que o encontraram no dia seguinte, adormecido num canto, vomitado o jantar e envergonhado de si.

Toldado de sol

Leio no Algarve o Nuno Júdice, que aqui nasceu e no mesmo ano que eu. E confronto-me com o retrato «daqueles homens que tendo perdido tudo, ou não tendo chegado sequer a juntar alguma coisa, optavam por exibir a sua velhice gasta e inútil como se fosse um património capaz de se impor aos respeito dos concidadãos». Sopra uma brisa morna, um sopro de juventude. É a promessa de que tudo é possível, apesar dos concidadãos, a começar pelos do toldo ao lado.

sexta-feira, 29 de julho de 2005

VITRIOL

O livro lá estava, na feira do livro de um inesperado local, numa noite de vento. Escondido entre tantos outros, discreto como convinha ao tema. Iniciado no problema, trouxe-o comigo. Tem como sub-título «Fragmentos» e vê-se que foi gerado com muito esforço e com a alma dorida. O autor andava a estudar as «cisões maçónicas portuguesas» e este parece ser as aparas da investigação. Saíu-lhe como uma cronologia e por isso lhe chamou «Anuário Maçónico Português». Interessaram-me do que folheei as cisões: trinta em duzentos anos. Para uma obediência que se quer da fraternidade humana, não vai mal. Sintomático, o livro vai dedicado aos maçons que entraram no Oriente Eterno, e aos que abandonaram a loja «por coerência com os princípios que sempre regeram os pedreiros-livres». Mas haja esperança: a carne deixará os ossos, mas a acácia florirá!

quinta-feira, 28 de julho de 2005

O meu cantar...

Tinha que suceder! E foi ontem. Lendo o que ficou para trás, posso dizer que quase se adivinhava o que acabou por acontecer: passou um dia e eu não escrevi. E agora, ei-lo, imenso, visível, frontal o buraco horrendo, a evidenciar o vazio e a falha. É o maior dos pesadelos, o de um dia acordar-se e faltar-nos um dente frontal; imaginarmos que ao abrir a boca todos à nossa volta notarão esse momento de degradação, evidência vergonhosa da velhice; sorrirmos com um esgar, evitarmos falar, sentirmo-nos enfim menos do que ontem. Animal carnívoro, não há nada que mais marque no humano a penúria e a precariedade do que a desdentação. Lembro-me da «Cena do Ódio» do Almada Negreiros e uma saudade imensa dessa noite: «o castigo das serpentes é-me riso nos dentes, Inferno a arder o Meu cantar!

terça-feira, 26 de julho de 2005

A hora aziaga

Primeiro, foi a ideia de escrever aqui quotidianamente, não por obrigação, mas para não enfrentar a vergonha de terminar um dia sem que eu tivesse ao menos uma simples ideia para partilhar neste local. Depois, foram as obrigações profissionais, os deveres sociais e as necessidades animais a gastarem horas atrás de horas e pouco tempo a sobejar para vir aqui. Por vezes, foram mesmo os desejos e os sentimentos a concentrarem neles as energias sobejantes. Enfim, frequentemente o aproximar da meia-noite e a mudança de dia encontrou-me completamente vazio de mim e esgotado dos outros. É uma hora aziaga esta a da meia-noite, eu sei, em que Cinderela receia perder o sapatinho e eu temo não descalçar a bota.

O bate-chapas

Mandaram-me hoje, por graça, um chiste: «se vires homem a abrir a porta do carro para mulher entrar, ou o carro é novo, ou a mulher é nova». Uma gracinha! Pois, castigo de Deus! Ainda de goela arreganhada, amolguei a porta do carro! Da próxima rio para dentro...

segunda-feira, 25 de julho de 2005

Respeitinho!

Hoje a directora do Instituto Camões, para explicar o apoio dado a um determinado trabalho publicitário, sentiu necessidade de dizer que «publicidade é também cultura!», o que parece razoável. E, para dar exemplo que ajudasse à explicação [pois há quem não perceba se não à força de exemplos!] lembrou o Alexandre O'Neill, «que para além de poeta, também era publicitário». Bela escolha exemplificativa, mas para ser usada com prudência. É que o dito autor do magnífico «uma coisa em forma de assim», arranjou não poucos sarilhos precisamente no seu trabalho de publicitário, por causa das suas geniais tiradas culturo-publicitárias. E não foi tanto o «vá de metro, Satanás», que a companhia do Metropolitano, aliás, se recusou a comprar! O que atingiu mais foros problemáticos foi o «no colchão Lusoespuma, não se dá apenas uma!». É que, como ele próprio escreveu, «neste país em diminuitivo, respeitinho é que é preciso!».

domingo, 24 de julho de 2005

Nego e t'arrenego!

Permissão para falar de mim! A revista «Única» do Expresso de ontem traz um artigo sobre o Hotel Palácio do Estoril, fixado nas historietas dos «importantes» que o frequentaram. Entre famosos do cinema e da literatura, cabeças coroadas destronadas e refugiados em fuga, lá vem a galeria dedicada aos espiões e outros «quinta-colunáveis», que por ali passaram ou terão supostamente passado. A autora da prosa seleccionou, para ilustrar o texto, uns quantos casos. Lendo o escrito, constato não sem surpresa que ela copiou na íntegra informações que eu trouxe há vários anos para o conhecimento português através de um livro que felizmente saíu já do mercado! Ou seja, fez o que já é normal nesta terra: omitiu a fonte, para não dizer mais feio. Só que Deus é grande! Se a jovem autora tivesse posto lá o meu nome, via-se que muitas das asneiras que lá vinham eram da minha lavra, fruto de uma investigação então ainda muito incipente. Assim, fica ela com a fama de ignorante. É caso para dizer: bem feito! Cá por mim, já sei: se me vierem pedir autorias, faço como o Jô Soares: nego, n-e-g-o, nego!

Cansado da estúrdia

Nasceu em Portimão e morreu na Argélia. Estudou no seminário e viveu intensamente uma vida de boémia. Escreveu obras literárias sedutoras. Foi Presidente da República durante dois anos, entre 1923 e 1925. Hoje já quase ninguém se lembra de si. Chamava-se Manuel Teixeira Gomes. Desaparecida a figura, a sua memória continua, com mais ou menos variantes. Um homem «cansado da estúrdia», assim o retrata o oficialíssimo «site» da Presidência da República. Conceito curioso. Muitos o sentimos e compartilhamos; é precisamente isso, cansados da estúrdia.

A nova censura

Somos de facto um país de velhacos! Por pura ideologia queimaram-se livros, por ordem ministerial, após o 25 de Abril e, afinal, havia muito responsável que «não sabia»! Mais, quando se falou na imprensa, anos a fio, na queima de livros, o ícone repetido à exaustão eram os autos de fé feitos na Alemanha nazi. E, no entanto, aqui tão perto, havia uma verdade próxima, mas escondida. Eis a liberdade de expressão e de informação neste país, onde ainda há esqueletos nos armários! Tudo isto só é possível por uma razão, a cumplicidade de quem sabe com quem esconde. É isto que dita a nossa história, o ser quase sempre «oficial», a hipocrisia e o jogo da conveniência a sua moral mesquinha. Ao «Cavaleiro de Oliveira» queimaram-no os da Inquisição «em efígie»! O queimado, vivo em Londres, teria comentado que nunca teria sentido tanto frio na vida. Ora isso mesmo senti eu ao ler «O Público» de hoje, onde o Adelino Gomes teve a coragem de, vencida a nova censura, contar, finalmente, a história da queima dos livros! Um frio de rachar! De rachar mesmo!

sábado, 23 de julho de 2005

Muito menos e mais depressa

A frase veio a propósito. Encontrei-a num livro de um escritor que hoje passou ao esquecimento, Metzner Leone. Fala ele dos quadrúpudes como sendo animais mais espertos que os bípedes, pois se cansam menos. Só que, no caso, vinha eu a quatro rodas, esfalfando-me mais depressa!

sexta-feira, 22 de julho de 2005

Sublimado corrosivo

Ter uma apetência ao menos pelo sublime ou pelo ridículo e não fazer disso uma causa, mas ao menos uma vivência! Claro que vivido num dia de calor, atulhado em quotidiano, o homem nem nisto pensa. Talvez lhe chegue parte da ideia ao fim da tarde, antes de adormecer com a cara colada ao vidro do transporte público, a acidez do suor a corroer-lhe as entranhas, a indiferença dos outros a fazer-lhe companhia.

Sequer

O dia de ontem não existiu. Ninguém o acredita, porque a roda do tempo não pára. Só que em cada um de todos nós, mesmo nos que não o sabem, vivem-se várias vidas, como as surpreendentes esferas concêntricas chinesas, umas dentro das outras. Para além da esfera exterior, a do mundo quotidiano, que julgamos ser o único real e por causa do qual acertamos o relógio, tudo o mais corre numa tal dimensão de intemporalidade que o vector tempo não lhe faz falta nem tem sentido. Por isso, ontem, o dia não existiu, sequer.

quinta-feira, 21 de julho de 2005

Toda a gente e ninguém

Há no livro «O Ministério do Medo» de Graham Greene o personagem central, Arthur Rowes, que, tal como a maioria dos homens que vivem sozinhos, «acreditava que os seus hábitos fossem os de toda a gente». Ao reler isto compreendi a razão pela qual tais homens sós procuram companhia: precisamente para, deixando de ter os hábitos de toda a gente, passarem, enfim, a hábitos que sejam só os seus.

quarta-feira, 20 de julho de 2005

A promessa

Prometi a mim próprio que escrevia aqui todos os dias. Não estava escrito que fosse assim! Está escrito e é assim!

terça-feira, 19 de julho de 2005

A enxaqueca

Dizem, lisonjeiros, que é a doença das pessoas inteligentes. Mas há que ser saudavelmente inteligente para perceber a lógica da afirmação. A frase não quer dizer que seja burro quem a não tenha e também não quer dizer que seja por causa de a ter que se é inteligente; o que o dito quer dizer e diz é que nos idiotas ela não surge. Só de ler isto sinto-lhe os sintomas, a aura e o enjoo. Que grande estupidez!

segunda-feira, 18 de julho de 2005

Sabendo escrever

Terminei depressa o livro dos aforismos e irritado; porque muitos não são aforismos, mas começos de poemas e porque há aforismos que Pessoa escreveu como tal e ali não estão e porque, enfim, tudo visto, o conjunto soa a um caderno espirituoso de frases irritantemente bem feitas. Mas ainda consegui encontrar no meio um «eu gosto tanto de ti que tenho vergonha de mim» que eu deveria ter escrito, se soubesse escrever o que penso.

«Aforimos e afins»

Richard Zenith seleccionou e prefaciou aforismos vários de Fernando Pessoa e dos seus múltiplos heterónimos. Já me tinha cruzado com eles na livraria, mas hoje, diminuído pelo calor e por um almoço que se alongou no momento e diminuiu na quantidade, venci-me e fui, rua acima, procurá-lo para o abrir e nele encontrar a frase reconfortante para todo o indivíduo que se obstina ser mais do que mero cidadão: «não há normas, todos os homens são excepções a uma regra que não existe». Apeteceu-me pinchá-la na parede do tribunal mais abaixo; mesmo que não fosse para a aplicarem, ao menos que fosse para irem pensando nisso.

A erradicação do erro

Ler e esquecer o que se leu. Pensar num livro e nem sequer fazer ideia de como é. E, no entanto, tomá-lo nas mãos e, ao virar de umas folhas, recuperá-lo todo, na memória e nos sentimentos. Foi assim esta manhã, com o «Físico Prodigioso». Havia-o, lido linha a linha, e numa delas sublinhara a estranha expressão, de que aqueles homens «idosos e alquebrados pelo estudo, os jejuns, e as vigílias dedicadas à erradicação dos erros demoníacos, iam não sendo os mesmos». Amanhã tê-la-ei esquecido, à frase; hoje, perplexo por ela, nem faço ideia como é.

domingo, 17 de julho de 2005

Um mundo panorâmico

Havia uma janela panorâmica sobre o rio e nele, insignificantes pela distância, banhistas do interior, dos que não têm mar, nadavam no que lhes resta. Talvez o vinho ajudasse a recompor-me. O mundo percebe-se na lógica que têm todos os outros; mesmo quando não é comnosco, é quase sempre por nossa causa. Saudêmo-los, pois, precisamente assim, à distância, e para que tudo lhes reste e nada lhes falte.

À farta-brutos

Chega-se a uma cidade, dessas que agora têm universidades e institutos superiores e sítios parecidos, de onde saem doutores e procura-se uma livraria: ou o que há é uma papelaria com uns livros ao acaso ou é uma magríssima venda de banalidades romanescas e novidades literárias óbvias. Chega-se a uma cidade dessas e um súbito desejo de ser estúpido toma conta do forasteiro. É mais fácil perguntar-se onde é que se pode almoçar, à farta-brutos, precisamente!

sábado, 16 de julho de 2005

Possuído de estranhos apetites

Se a vida se expressasse toda em literatura, eu procuraria hoje num livro um modo de exprimir-me. Vasculhava os poemas em negativo, para encontrar a forma de dizer não; revirava estantes de prosadores, para saber como se conjuga o verbo apetecer. No fim, teria conseguido dizer o não me apetece, porque é isso, dito sem métrica e sem estilo, o que me apeteceria, afinal, dizer. Acho que o descobri! Nem tomar banho ou sair à rua, não me apetece meter-me à estrada ou mexer-me daqui. Não me apetece ir buscar livros, lê-los ou folheá-los. Não me apetece que saibam que não me apetece. À hora, darão pela minha falta e talvez nem queiram saber. Ontem pisaram-me um pé, desiquilibraram-me por dentro, por isso, coxeio por fora, insaciavelmente, hesitante de apetências.

sexta-feira, 15 de julho de 2005

As escadas da Lello

Coincidiu. Eu tinha lido o poema do João Miguel Fernandes Jorge, «As escadas da Lello», que vem no livrinho «Março, os remadores no Douro». E tudo me fazia sentido, por ser Março o mês da coincidência e por ter coincidido eu estar no Porto, por ter comprado o livro para oferecê-lo e coincidir não me ter sido possível que o recebessem. E lembrei-me dos versos «eu queria, de novo, o entrecruzar dos corpos à hora de almoço descendo as escadas da Lello». Só que a Lello é hoje uma miséria literária, um expositor de novidades fáceis. Fundou-a José Pinto de Sousa Lello, em 30 de Junho de 1894, com o espólio da Livraria Cruz Coutinho e da livraria de Ernesto Chardon. O prédio, estranho e ímpar foi construído, propositadamente para o efeito, como se para uma catedral de livros, em 13 de Janeiro de 1906, um projecto de Xavier Esteves. Todo o seu interior tem a ver com livros, das estantes à escada, a célebre escada da Lello. Desconsolado com a falta de prosélitos, dei comigo, sem sentido, «descendo as escadas, longe dos livros, longe das nuvens, longe de tudo». Coincidiu.

Antenas parabólicas

Confesso que comecei a ler por alguém ter dito, por amabilidade, que a minha forma de escrever lhe lembrava a dele. Mas não me reconheço. Pior! Canso-me. A princípio ainda se multiplicavam as observações com significado e ricas de sentido, como a «a ciência é talvez a maior das artes», ou a «retina paspalheira da multidão inferior das esquinas», mas depois ou «A Estranha Morte do Prof. Antenas» começou a tornar-se uma novela policial barata, sem substância nem forma ou fui eu que comecei a já não ser capaz de tirar água filosófica das pedras literárias. O Mário de Sá Carneiro não tem culpa! Eu é que, com pouco tempo, ao decidir começar por este conto, que é de todos os que a Assírio & Alvim editou no volume «Céu em Fogo», um dos mais curtos, é que, se calhar, na ânsia de chegar ao fim, comecei pelo lado errado e, logo a meio, estava perdido. Enfim, antenas por antenas, a verdade é que não consigo captar nada! O programa segue, por isso, dentro de momentos...

A esperança

Não haver Deus que os salve dos que matam em nome de Deus! E no entanto, rezam, esperançados, como se isso não fosse assim...

quinta-feira, 14 de julho de 2005

O Vagão J

Os professores sabem-no. De entre a massa indiscritível uns olhos brilham ao que se diz. Para alguém faz diferença o estarmos ali, se não pelo que somos, pelo menos pelo que fazemos sentir. Passa-se o mesmo com a literatura. E, no entanto, é sempre como se da primeira vez a consciência de que para alguém tivémos um mínimo de importância. Sabem-no também os pintores de tabuletas, literatos do prático, amigos do esclarecimento: «Cuidado, um comboio pode esconder outro!». É o mesmo na vida. Para fugirmos do rápido especial de passageiros, atropela-nos a composição ronceira de mercadorias, o vagão J da rotina ferroviária.

Um fino!

O ceguinho sentara-se, acórdeão ao colo, à sombra de uma esplanada, numa pausa para uma imperial. Em torno dele chispavam, reprovadores, olhares duros dos afogueados circundantes. Habituada ao cego hirto, mão estendida e cão aos pés, no seu posto de trabalho de mendicidade profissional, a cidade não lhe perdoava este instante em que, refastelado e encervejado, ele, o pedinte, se nivelava, igualitário, a todos os demais. Ao que isto chegou!

Consoladas tribulações

E de repente tudo interage e se confunde, numa síncrese que dá sentido a quanto se viveu: foi a tristonha da Irene Lisboa, a autora da «Solidão», quem traduziu em 1958 «O Vestido Vermelho» de Stig Dagerman, o mesmo autor de um livrinho, editado pela Fenda, de quem ontem, sem pretexto, aqui falei, e que tenho aqui hoje, cedido amigavelmente, para que o leia, talvez pelo título «A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer». E é precisamente a propósito da Irene Lisboa que o Cardoso Pires, com quem há pouco e por acidente aqui estive, apelava em 1966 para uma «vigilante tristeza no meio da alegria» vendo-a então, morta, «interessar à Cidade». E é por ele, a esse respeito, ter falado na «necrofilia literária», a da recuperação dos mortos desprezados em vida e é, enfim, por ter sido sobre isso mesmo que há pouco eu escrevi, por tê-lo lido, já meio morto de cansaço, no Mário de Sá Carneiro, que glorifico o acaso e as surpresas que nos traz. É ele que, dando sim consolo à irracionalidade da vida, a ilumina feericamente com um fundamento que, de outro modo a vida já não teria.

O presente intemporal

Agora que recomecei a ler, lembro uma frase que, na folha anterior do conto do Mário de Sá Carneiro, dizia: «é que, nada há que torne alguém mais lisonjeiro ao povo do que a lenda». Curioso! Antes de me decidir por ele, estivera a folhear um livro, dos que ainda hei-de ler, pelo qual se continua a edição das obras do José Cardoso Pires, com quem me reconciliei, conhecendo-lhe, enfim, a obra. E sucedeu que, ao virar as folhas desses «Dispersos», ainda li, de soslaio, um artigo que ele publicou no falecido «Diário de Lisboa», em 7 de Abril de 1969 chamado «A estratégia do requiem» e onde, a propósito precisamente das «impunidades que a morte facilita», diz precisamente do escritor morto: ele repousa, está dócil e moldável às recuperações que queiram fazer da sua obra. Agora, sim, passou a ter existência contemporânea. Expõe-se à lenda, é um presente intemporal, e já não compromete aqueles que o ousem tocar». Ora eis que, com esta ideia da existência contemporânea dos que se foram, agora me vou.

A praia à vista

Não quis adormecer sem ler nem a ler um conto do Mário de Sá Carneiro chamado «A Estranha Morte do Prof. Antena». Pelo menos comecei-o e fui lendo até àquela parte, que é a terceira página, onde ele diz que «como o inexplicável se não explica, mas tem que ser admitido». Foi aí precisamente que eu adormeci. Inexplicavelmente, admito, afogado de cansaço, a vinte e uma páginas do fim. Acordei agora, para vir aqui.

quarta-feira, 13 de julho de 2005

A utilidade pública

«Ele tinha as calosidades judiciosas dos estadistas experimentados, a linha recta dos galopins veteranos; arquivava as gazetas que o insultavam numa estante da latrina, e dizia que as correspondências da oposição naquele sítio conseguiam o seu fim de utilidade pública». É Camilo, em 1879 e sempre. Uma barrigada de riso. Uma «literatura disssolvente».

A mentalidade provincial

São seguramente os pequenos momentos que geram os grandes pensamentos. A Biblioteca Nacional tem organizado os seus «tesouros» documentais. Um deles é um livro «História da prouincia Sãcta Cruz que vulgarme[n]te chamamos Brasil». O seu autor, Pero Magalhäes de Gandauo, um bracarense, filho de pai flamengo, de cuja biografia pouco se sabe. A edição data de 1576. Encontra-se em http://purl.pt/121/1/P0.html. O que é curioso é precisamente o implícito no texto, a imensidão continental do Brasil reduzida à «província de Santa Cruz». Calcula-se que para um povo que deu novos mundos ao mundo, o que «vulgarmente chamamos Brasil» fosse, na ocasião, uma província, entre as demais!

Precisamente assim

Eu não sei como há pessoas que escrevem sem gralhas, exprimem-se sem erros, pensam sem hesitações. No meu caso a única coisa que é fácil é a iniciativa, o espontâneo estonteante da ideia, a rapidez feérica ao escrevê-la. No mais, é um calvário de revisões, um caminhar trôpego pelos mesmos lapsos, um tropeçar frequente na inutilidade do que faço. E, no entanto, sufocaria sem a janela aberta do outro, enlouqueceria andarilho solitário no cubículo dos meus pensamentos. Vem a isto a propósito precisamente de estar aqui, erróneo, gralhado, hesitante. Magnífica situação. Mesmo as ondas de calor gorduroso da rua, até o zumbir pegajoso das moscas da tarde, nada me incomoda. Uma tarde excelente! Eu não sei como há pessoas que não escrevem mais assim!

O falar doce

Os jornais de referência ficam sempre embaraçados quando editam «mensagens» que são, afinal publicidade à prostituição. Divididos entre um princípio editorial [o do respeito pela dignidade da mulher] e um interesse financeiro [o viverem dos anúncios, sejam lá quais forem] lá tentam esconder a oferta, através da linguagem discreta dos anúncios. Claro que há sempre a ostensiva «brasileira, morenaça, boazona, fogosa, completa»; mas há também, «os lábios como lírios, os seios frutos novos para serem contemplados». É toda uma arte estilística ao serviço do que se sabe. «Começa no falar doce», diz um anúncio de hoje. Pois calculamos que sim, sem sombra de dúvida.

O verbo

Não há entrevista de editor que eu perca. Outro dia, foram os rapazes da Cavalo de Ferro, há dias foram os da Fenda, ambos no Mil Folhas. Vasco Santos, o editor, falava da refundação da sua editora e do que ele e os outros gostavam, o «não precisar de vender os livros que fazemos». E foi aí que encontrei, enfim, a forma verbal atípica que procurava eu também para me refundar: a Fenda, uma editora que «procura a arte de desentristecer». Eis!No princípio era o verbo! ...

A formiga argumentativa

Acontece a quem tem alguns livros e nem sempre os lê: aos que, como as formigas pensando no Inverno, acumulam para quando não houver. Tive a percepção, ao sair da livraria, de que já o tinha, mas ao chegar à estante, lá estava, provocador, um seu igual. Era a «Histoire de la rhétorique». Vista por fora, na edição francesa dizia-se que o livro saía sob a direcção do Michel Meyer, o sucessor em Bruxelas de Chaim Perelman. Visto de dentro, concluía-se que nele havia prosa também de Benoît Timmermans e do nosso Manuel Maria Carrilho. Gasto inútil. Pior, descobri que já tinha também comprado a tradução portuguesa, editada pela Temas & Debates em 2002, onde o português já merecia honras de menção na capa. Enfim, nada a fazer. Inútil argumentar! Em matéria de retórica, estou convencido e tenho provisões que chegam até à primavera. E sobretudo, mais do mesmo, que é uma forma sofística de argumentar pelo esgotamento do interlocutor!

Papel para escrever

Sejam compreensivos os que me viram ir abrindo e encerrando blogs e me surpreendam agora aqui. Foi nessa ânsia fazedora que encontrei talvez o modo mais lógico de me exprimir, supondo-o este. «A Revolta das Palavras» padeceu de ser a continuação de uma crónica jornalística homónima, na qual os leitores esperavam uma atenção ao real da vida e ao surreal da política que o autor não conseguia satisfazer. «O mundo em gavetas» era a expressão de um personagem, ensimesmado e revoltoso na sua passividade neurótica. «O Marceneiro Místico», uma tentativa, impossível de concretizar, a de erigir uma espiritualidade simbólica, sem religião. Tudo isso deu, afinal, em nada. Diminuído pelos equívocos que tudo engendrou, julguei [se não jurei] que não voltaria à blogoesfera, salvo num blog que, por razões profissionais, alimento agora com regularidade, depois de três meses de anemia, o «Patologia Social». Confesso que não consegui resistir ao mutismo compulsivo. Não que exija leitores, mas qual preso numa cela solitária, reclamo apenas papel para escrever. Voltei, pois. Não prometo nem espero, escrevo. Apenas isso.