sábado, 31 de dezembro de 2005

O beneficente consolo

A salvação já existiu! Andávamos por meados do século dezanove e ela chamava-se a «Associação Consoladora dos Aflitos».Tinha um jornal, que a Biblioteca Nacional generosamente agora faculta à leitura pública, aqui e que se chamava «A Beneficência». Vendia-se «na loja do sr. Lavado, Rua Augusta, n.º 8». A associação, segundo proclamava o generoso periódico, era animada pelas «damas ilustres (...) semelhantes a bandos de níveos pombinhos, conduzindo verdes ramos de pacífica oliveira». Com tais níveos pombinhos, um homem ficava consolado pela certa, por mais aflito que andasse.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2005

Elixir capilar

Só o homem, que não os outros animais precisam de ir ao barbeiro e mesmo assim só em relação aos pelos da cabeça, enquanto não caem de vez. Agora a esses fígaros chamam-se de cabeleireiros, o que faz sentido, vista a zona onde primacialmente operam. Só o homem que não os outros animais precisam de ir ao barbeiro cortar os pelos da parte de baixo da cabeça, os da barba e do bigode. Se nisto, da ininterruptabilidade do crescimento capilar está a natureza humana do homem, a calvície é a tragédia existencial da desumanização.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2005

Na imensidão de um muro

Eu tenho um amigo que em cada Natal manda imprir um livrinho com poemas e pequenos outros textos que selecciona e o distribui por aqueles a quem quer obsequiar. Este ano, uma amiga fez o mesmo com belíssimos textos seus. Fale-se, para já, do primeiro, onde eu leio o que estará inscrito num momento da imensidão da Grande Muralha da China: «a certeza guardada como reserva, elogios não esperados de um artista, a descoberta da nobreza em nós próprios». São as três coisas boas.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2005

Uma língua que ecoa

Continuam as leituras compulsivas para o fechar do já atrasado livro. Há sempre uma pausa agradável, mesmo nos dias que nos entristecem. No caso, foi ao ler nas memórias de Elizabeth Hill, a prima russa da minha biografada, o momento em que ela assiste às aulas de russo na Universidade, em Inglaterra. Ministradas por um professor arménio, os seus alunos eram obedientes oficiais do Exército britânico, que, ante o facto de o professor repetir, para melhor audibilidade, cada palavra do vocabulário a memorizar, convenceram-se, com seriedade, que em russo cada palavra se pronunciava, sabe-se lá porquê, duas vezes: «niet, niet», «da, da»!

O lugar de toda a gente

O livro trata da vida quotidina em São Petersburgo na época romântica. Estou a estudá-lo porque a minha biografada, Nathalie Sergueiew nasceu naquela que Pedro o Grande quis que fosse a janela da Rússia sobre a Europa. Há nele um capítulo que trata da condição feminina e outro da vida cultural nessa cosmopolita cidade. Não recordo em qual vem a propósito de Elizabeth Khitrovo, filha do general Koutozov que, estando doente, e não podendo receber nos seus salões, como costumava, a corte de intelectuais, artistas e homens de cultura que a frequentavam, abriu-lhes as portas do seu quarto e a um, com equívoca amabilidade, lhe disse: não, não se sente aí nessa cadeira, pois é a preferida de Putschkine, nem naquele fauteil, pois é o de Viguel. Sente-se aqui, na minha cama, que é o lugar de toda a gente. Uns anos depois, os sovietes arancavam em armas com o sonho de que isso era uma verdade universal para todas as coisas, em todos os lugares.

terça-feira, 27 de dezembro de 2005

Vocês, vejam lá!

Vi-o, na capa do JL, ao professor Matoso, o historiador. E lembrei-me que tinha de comprar o jornal. Na papelaria o homem disse-me um mas este é o da semana passada e acresecentou mais é que isto sai de quinze em quinze dias. Como eu lhe disse um convicto eu sei eu sei, mas é que me esqueci de o comprar, rematou-me com um pois é, este é daqueles que nunca se desactualizam! Pois não, vim eu a pensar. E. de facto, lá dentro ainda se fala do Afonso Henriques, vejam lá!

segunda-feira, 26 de dezembro de 2005

Prognóstico reservado

Saíu também a Geometria do Abismo da câmara de reanimação em que se encontrava. É claro que a dispersão exaure e mata de fadiga quem escreve e de cansaço a quem lê. Talvez por isso a «geométrica noção dos males e dos remédios» ajude um pouco na convalescença.

A lenda dos malvados

Por andar a escrever um livro sobre a pintora Sonia Delaunay acabei hoje, dia seguinte ao de Natal, a leitura minuciosa do livro que o Mário Cláudio escreveu sobre Amadeo de Souza-Cardozo. Mário Cláudio é um dos que felizmente encontrou depois do Direito uma forma de se salvar, pela literatura. O livro é superlativo, como momentos extravagantes de observação, como quando surpreende que na vida do seu biografado «as mulheres desfilam no horizonte de sua mira, como outras tantas hipóteses de conhecimento de si mesmo». No caso são, em Paris, incessantes «expedições cinegéticas do amor», em que entrecruzam mulheres «exaustivamente nuas», «a entrega a ninfas e harpias que caracteriza a lenda dos malvados». Tudo acaba, porém, no caso de Amadeo ainda sem completar trinta e um anos, no dia vinte e sete de Outubro de mil novecentos e dezoito. Nesse dia «a vida que findara começa, como todas as que se extinguem, no reviver do palpitar definitivo das suas cores». Mata a pneumónica um extraordinário pintor: «pessoas de tal nervo, só porque não podem dar-se ao luxo da ausência de si próprias, se não ausentam dos outros».

Enleante cuidado

Repare-se num gato a atravessar numa casa por entre obstáculos miúdos e dispersos. Tem de articular quatro patas, fazer passar um corpo horizontal, extenso em excesso comparativamente com a sua distância do chã,. maior em comprimento do que em altura. Compare-se com o homem, que tem duas pernas e não quatro e, porque na vertical, ocupa menos raio de acção. Veja-se agora a trapalhice do humano e a destreza do felino. De vez em quando lá vai um bibelot em cacos. Segue-se uma zaragata, não de miaus, mas de berros!

domingo, 25 de dezembro de 2005

Amar

Havia-os em todas as casas dos anos quarenta, com aquelas capas que hoje ressuscitaram para o bom gosto, os livros do Stefan Zweig. Alguém disse outro dia que ele era um escritor mediano. E, no entanto, este domingo de Natal a sua descrição de Sigmund Freud devolveu-me, enfim, a compreensão respeitosa pela escola psicanalista de Viena, o modo como ele comenta o Ulisses de James Joyce ensinou-me, enfim, o que é o génio de escrever. Um homem destes ama os livros. Sobre eles escreveu um agradecimento singular: "os livros esperam, em silêncio. Chamam, convidam-nos, mas não exigem". Só quem ama, respeitando-se, escreve uma coisa assim.

A estrada

Chove e é domingo e por ser Natal há nesta estrada esperanças contentes e memórias entristecidas transportando-se no sonho reflexo da ilusão.

sábado, 24 de dezembro de 2005

Os limites da compreensão

Interceptou-me na rua e disse-me que representava o senso comum, tal como John Locke. Eu sei que é inesperado ser-se interrompido numa rua, invulgar quando isso acontece numa noite de Natal, excepcional para nos virem falar no senso comum, caso único quando é alguém que se diz idêntico a John Locke. Locke nasceum em 1632. Um dos pontos nevrálgicos do seu contributo para a filosofia foi a compreensão dos limites do entendimento humano. Eis precisamente com o que me confrontei esta noite, a minha incapacidade de pereceber o que se passava com esta mulher, mesmo em termos de senso comum. Ouvimo-nos e sem que nos tivéssemos entendido, mutuamente nos desejámos um Bom Natal.

De vésperas

Há um ditado brasileiro que diz que «às vezes é preciso fingir de morto para continuar vivendo». Talvez tenha sido isso. Tal como como nos corpos em agonia, a Mãe Natureza desliga-lhes tudo o que gasta energia vital, lançando-os em coma. Fica o mínimo aplicável à sobrevivência. Não escrevi, mal li, quase não pensei. No mais, tentei cumprir as minhas obrigações profissionais e os meus deveres pessoais. Aqui estou, quase sem fôlego, na véspera de Natal. Quando eu era miúdo ansiava por amanhã. Hoje também.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2005

Sabina Freire

Ora entre o carrego de livros que, entusiasta, comprei a semana que passou, encontrei, em cuidada encadernação já moída de maus tratos, o «Sabina Freire», peça de teatro de Manuel Teixeira-Gomes, que já foi Presidente da República e de quem já falei aqui. Na linguagem redonda da época o autor apresenta assim a sua personagem: «ondulosa, braços magros, cinta fina, quadris estreitos, seio farto e inflando na bem geminada curva dos bem distintos pomos». Um homem lê isto e vê, como se um cego em braille, tacteando as letras com as pontas dos dedos.

O acaso persistente

Este fim de semana dei comigo a pensar como haveria de escrever um livro que começara há semanas a alinhavar, mas que não encontrara ainda forma de se expressar. Hoje, depois do jantar, fui à mala do carro, para alombar escada acima com dois sacos de alfarrábios que comprei há dias a uma elegante e distinta senhora que vende livros com a categoria de quem recebe amigos para um cuidado chá. Uma dessas preciosidades é do Metzner Leone, e é um romance que abre com uma frase que eu sei que é muito minha: «qualquer romance tem, pelo menos, duas histórias: a que conta o livro, e a história do próprio livro». Eis neste livro, nas palavras de outro, o que eu havia pensado para o meu livro. Claro que é uma simples coincidência, daquelas que nos martelam a cabeça de persistentes.

domingo, 11 de dezembro de 2005

E é melhor nem pensar!

Eu disse ontem aqui que estava a ler o livro de contos da Florbela Espanca, mas não disse que ele se chama «O Dominó Preto», nem que tinha conseguido ler o conto que dá nome ao livro, na ânsia que fosse o melhor. O tom geral da escrita é aquela calda lacrimosa e adocicada que torna cada uma das linhas como se uma caminhada dissolvente e contribui para a enervação do leitor. A história é a do marçano plebeu, o José, que se enamora da longínqua e distinta cliente, a Maria, e que por marcar encontro em noite de Carnaval num jardim público ao qual ela não aparece, se mata, insolitamente à facada. Como personagem que se preza, o José morre mesmo, no último parágrafo do conto, com uma andorinha a ajudar à cena, passando-lhe veloz «rente à cara dele, com um gritinho de alegria». É assim. A surpresa é que há na narrativa aqueles momentos de lubricidade oculta, como mão discreta entre rendinhas íntimas: não é tanto o dar-se o leitor a perceber nela o «passinho grácil», a «boca fresca» de «polpa carnuda e sumarenta de um morango acabado de colher»; é mais aquele passo em que o José lhe ouve, em imaginação doente, «o riso garoto cheio de reticências, evocador de carícias proibidas e desejadas, o riso que às vezes lhe fazia vir à ideia coisas em que seria melhor não pensar». Num seu diário Florbela definiu-se como «casta sem formalidades», «a palpitar de seiva quente». Percebe-se, e muito bem.

Florbela: conhecer-me!

Eu sei que esta semana fez anos que nasceu a Floberla Espanca, que nasceu em Dezembro e em Dezembro quis morrer. Hoje, já longe da data, tenho comigo apenas um livro de contos que ela escreveu e peço-lhe ajuda para poder ter algo de digno a dizer. É pena, porque como disse a Ivette Kace Centeno, que prefaciou uma sua edição, «incomoda nos contos o fácil dos estereótipos». Mas nem tudo é mau neste momento residual de lembrar a tragédia de uma vida. É que nesse livro e nesse «prefácio», que melhor se chamaria de introdução, é lembrado um momento do seu «Diário do Último Ano» aquele em que Florbela configura a eventualidade de, quando enfim morrer, alguém ler aqueles seus «descosidos monólogos» e assim «realize o que eu não pude: conhecer-me». Por mim tentei, sem ser capaz e vim aqui dizê-lo, assim alguém me ajude.

sábado, 10 de dezembro de 2005

Demência, Majestade!

A Fenda editou um estudo do Ezra Pound sobre Camões. Disse-mo um livreiro de bairro, um entusiasta que tenta sobreviver há cinco anos neste mercado de ferocidade mansa que são os livros. Encontrei o opúsculo numa daquelas livrarias de Centro Comercial que agora parecem só ter lixo embrulhado em papel vistoso. Li-o hoje, sábado de manhã, num insólito local, a última fila de bancos da Basílica da Estrela. O texto é curto e trata essencialmente de um tema erudito, o da problemática da tradução de «Os Lusíadas». O que é um desastre é a revisão da tradução. Não fosse a solenidade do local, que umas jovens turistas excepcionavam, viçosas e matinais, tinha-me esbarrigado a rir, sobretudo naquele momento em que nele se diz que a Inês de Castro «foi apunhalada quando pedia demência ao então rei, Afonso IV». Exactamente assim demência! O livro vai em segunda edição: é caso para dizer não revista e muito diminuída!

quinta-feira, 8 de dezembro de 2005

A voz, o som, as cores

Há na rádio uma voz cavernosa que é a do António Sérgio. Com ele ouvi o «Lança Chamas» e os «Sinais de Fumo», programas de música tida por imprópria para o que eu deveria ser. Agora o António Sérgio está na «Hora do Lobo», da meia-noite às duas. Lembro-me dos tempos em que eu via rádio. Via, sim, as sonoridades coloridas por detrás dos sons que ouvia, um arco-íris de entusiasmo, na solidão da noite. Hoje, toupeira cega pelo excesso de luz, apuro o ouvido, no labirinto dos sons.

P. S. Hoje lembrei-me. E «Som da Frente» onde, pelo menos para mim, tudo começou?

terça-feira, 6 de dezembro de 2005

Epigrama

A un português que lloraba, preguntaron la ocasión; respondió que el corazón y que enamorado estaba. Por mitigar su dolor, le preguntarem de quién; Respondió que ninguén: lloro de puro amor! Lope de Vega escreveu este epigrama.

Vencimento

Só para o vencido há vencedor, precisamente porque não venceu. Vergílio Ferreira disse isso faz quarenta anos daqui a dez dias, ao Diário Popular. Nem quem o disse nem onde ele o disse já existem, vencidos.

domingo, 4 de dezembro de 2005

Pensava

Há no último livro da Agustina aquele momento em que as mulheres sofredoras estavam em vias de se tornarem mulheres irritáveis. Pensava eu que já tinha passado essa página, a página número cento e nove.

sábado, 3 de dezembro de 2005

Intervalos de animal

Eu sei que já passava da uma e meia da manhã, mas o sentimento urgente de que já que o dia acabara, ao menos eu podia ter a ilusão de ter lido qualquer coisa mais do que os papéis do meu trabalho, não me deixava descansar. Consegui! Eu sei que foi só meia-página de um livro que se arrasta na mesa de cabeceira há semanas. Mas valeu a pena, pois vem lá que «o homem só é um animal racional nos intervalos de ser animal». Como se vê precisamente pela vida que se vive.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2005

O princípio da verdade universal

«A vida que vivo não é a minha», Almada-Negreiros a Sonia Delaunay, admirável e universalmente verdadeiro.