Voltei aqui, desesperado de cansaço, depois de uma semana a trabalhar contra vontade, no que chamam a minha profissão «liberal». O José de Almada Negreiros escreveu ou disse, ou ambas as coisas até, que «quem trabalha que nem uma besta é evidentemente uma besta». Li isso hoje à tarde, um sábado com as ruas refulgentes de sol, um sol cansativo, perseguidor, que endoidece por encandeamento, um sol que me confina, a cabeça a estalar, ao mais sombrio de mim e ao sono reparador. Acordei, depois de ter dormido que nem uma besta. E, contando, as bestas, a que trabalha e a que dorme, já vamos em duas, incluindo o «evidentemente».
sábado, 29 de abril de 2006
terça-feira, 25 de abril de 2006
Valeriana
«Conta-me uma história», uma história qualquer, pode ser mesmo a tua história. Conta-me uma história, de alegria ou de tristeza, uma história pequena, pois é só para adormecer. É com isto que se animam os que escrevem, com isto se encantam os seus leitores. Entre bocejos e sonos refastelados, por vezes um sonho, quantas vezes um pesadelo, vai surgindo, hipnótica, soporífera, a valeriana literatura. Com ela adormecem, entretidas, as dores, acordam, provocadas, as paixões, dormitam, em geral, todos os sentimentos. Eu sou o livro e com uma voz feita de páginas e linhas, palavras e letras, proclamo, a melopeia melíflua de um pedinte: leia-me na cama, acorde comigo, um livro no chão. Se nada mais tiver, tem nessa noite, pelo menos, a ilusão da companhia. Leve-me consigo ao deitar, mesmo que seja só para adormecer. Eu conto-lhe uma história!
domingo, 23 de abril de 2006
Catando gralhas
Escrever e emendar, rectificar e corrigir. Apagar. Reler e rever. Tornar-se o escrito em maldito. No momento em que se odeia, o livro está pronto. Nesse dia há leitores capazes de o apreciarem, alguns mesmo com afagos amigos à escrita do seu autor. Pior que isto, é haver autores sem emenda. Semanas depois, ei-los, uma vez mais, de provas na mão.
sábado, 22 de abril de 2006
A vida ao sábado
Eu não tenho escrito, porque eu não tenho vivido. Não tenho dormido e se pudesse, neste sábado de chuva, não tinha sequer acordado. Eu vim escrever, porque, acordado, descobri, encharcado de sábado, que é aqui a minha forma de viver.
quarta-feira, 19 de abril de 2006
O dever primordial de nós todos
Quando o empresário Manuel Vinhas se ausentou para o fraternal Brasil, por causa da perseguição política que aqui lhe moveram, publicou um livro a que chamou «Profissão: Exilado». Um homem teve a ombridade de, em preito de gratidão, inscrever corajosamente o seu nome nesse livro de memórias amargas: Agostinho da Silva que, num notável texto de apresentação, exprimia, com ironia, o seu contentamento pelo seu amigo ter, à força, sido obrigado a largar os negócios, podendo, enfim, dedicar-se à escrita. Escrito no Natal de 1975, dizia o filósofo da portugalidade, a propósito do empresário das cervejas: «os negócios o afastavam de si próprio, relegando quase para tempo nenhum o seu gosto de escrever, de estudar e de marchar, e decerto obrigando-o a frequentar muito lugar e muita gente que lhe não respondiam ao mais profundo; foi empresário, proprietário, administrador, negociador de acordos, e não sei que mais; faltava-lhe cumprir o dever primordial de nós todos: sermos o que somos».
segunda-feira, 17 de abril de 2006
O dia mundial do livro
Vem aí o dia mundial do livro. Não direi tudo, pois é exagero, mas muitas são as trezentas e sessenta e poucas coisas da vida que têm um dia só para si, a começar pelo pai e pela mãe de cada um. Pois a 23 de Abril, antes que eu me esqueça, será o dia mundial do livro. Autores anónimos e do ignorado, que ninguém lê e que raro escrevem, tradutores saltimbancos de palavras, troca-tintas insignifcantes de significados, editores inescrupulosos, dos que publicam desinteresses e arrecadam o que lhes interessa, distribuidores que melhor negócio fariam em empresas de mudanças ou trasladações funerárias, leitores da fotocópia pirata e do resumo apresssado, todos, todos, terão lugar sentado na cerimónia desse dia, a mesa de torcidinhos, o copo de água, o pigarrear antes do discurso. Claro que há o esforçado escritor, o empenhado editor, o fiel tradutor, o aplicado leitor. Para esses, se houvesse vaga no calendário, eu propunha, não havendo objecção, um outro dia, em Abril ou em Maio, em dia útil ou num domingo. Talvez a 28 de Fevereiro, porque assim, comemorava-se só de vez em quando a sua apagada existência. Para lembrar misérias, já basta uma vez ao ano. No mais, festejamos todos os dias, folha a folha celebrando, até que nos quebre a lombada, as folhas se nos descolem, os olhos se nos apaguem.
domingo, 16 de abril de 2006
Curiosidade
Foi neste livro que eu li sobre as raparigas «que lhe subiam ao quarto por curiosidade de amor, que não era amor». Lê-se isto e não mais se esquece de ter lido. Talvez tenha acontecido assim com o José de Almada-Negreiros. Isso pouco importa, ter sido com ele.
Um futuro insensato
«Os homens sensatos adaptam-se ao mundo, os insensatos tentam que o mundo se adapate a eles. Por isso o progresso depende sempre de homens insensatos». A frase pertence a Bernard Shaw. Dá vontade de acrescentar, «por muito insensato que isso pareça».Mas dá ainda mais vontade ainda de acordar num domingo, manhã cedo, e acreditar tanto nisso que se passa a viver assim.
sexta-feira, 14 de abril de 2006
O homem do Livro das Maravilhas
Descobri-as, as outras línguas, compreensíveis numa parte, adivinháveis no resto. Não mais sairei daqui, deste mundo análogo dos dicionários, invariante das gramáticas, expansível da fonética, dúctil da morfologia. Começo com Ramon Lull, que terá nascido em 1232 e falecido em 1315 e que tem estátua em Palma de Maiorca. Vem no seu Cant de Ramon:
«(...) Vull morir en pèlag d'amor.
Per ésser gran no n'hai paor
de mal príncep ne mal pastor.
Tots jorns consir la deshonor
que fan a Dé li gran senyor
qui meten lo món en error (...)».
É uma hossana magnífica, linda de se dizer, e que termina em glória, assim e por esta forma:
«(...) Man Déus als cels e als elements,
plantes e totes res vivents
que no em facen mal ni turments.
Dó'm Déus companyons coneixen'
devots, lleials, humils, tements,
a procurar sos honraments».
Um tempo cruel
Os que desde ontem vinham, porta fora, à busca de sol levam com chuva. Encalorados, devem estar hoje em casa, à janela, a fumegar. Domingo regressam para as suas vidas quotidianas, em banho-maria.
quarta-feira, 12 de abril de 2006
Farsi
Segundo noticia o jornal o site iraniano «Iranmania», o povo português está cada vez mais interessado em aprender «farsi»e conhecer as literaturas orientais. Sepideh Radfar, uma linguista residente em Portugal anunciou assim a publicação em português do poema «Masnaviy-e Manavi ». A notícia já havia sido divulgada há um ano num blog que, entretanto, desapareceu. A língua farsi é das mais faladas línguas persas. Quem conhecer este nosso país pensaria que seria a língua dos farsantes, daí o seu progressivo interesse. Passe a brincadeira, o assunto é sério e vale a pena: Um universo desconhecido, num mundo carregado de trivialidades.
segunda-feira, 10 de abril de 2006
As penas de quem vive da pena
Um autor acaba um livro quando sente, raivoso, que o odeia, quando não acredita, desconfiado, que aquilo seja legível, quando morde, danado, em que lho queira emendar. Eu acho que um autor acaba um livro quando o entrega aos críticos para que o desfaçam, aos leitores para que o venalizem, trocando-o por reles dinheiro. Eu acho que acabei um livro. Ainda estou sem críticos e sem dinheiro, mas já tenho quem me odeie a mim, leia o livro e nos emende a ambos, às gralhas dele e aos meus ódios, raivas e danações. Eu acho que acabei o livro, antes que o livro acabasse comigo. Foi em legítima defesa da literatura, juro! Agora rendo-me aos tipógrafos, aos gráficos e aos distribuidores, os meus carcereiros para a longa pena de reclusão editorial a que me condeno.Quando sair a segunda edição, talvez venha a casa, de precária, um fim de semana.
domingo, 9 de abril de 2006
Girando cuidadosamente
Quando eu era garoto a rádio tinha um botão, que se girava, cuidadosamente, cada milímetro fazia diferença, no receio de se perder o sinal. Esta manhã de domingo ouço rádio através da Net, um som puro, cristalino, de uma rádio clássica, em língua inglesa, sabe-se lá se situada no Reino Unido. É uma rádio que tem anúncios e que ao domingo passa discos pedidos . Entre o Porgy and Bess e os concertos brandenburgueses, ouvi-o. Era um anúncio sobre uma empresa que compra apólices de seguros de vida. O negócio é simples: quando não tiver nada mais para vender, venda o seu seguro de vida. Pagamos bem. O anúncio não o diz, mas nós compreendemos: quando morrer, nós recebemos o seu seguro, esse é o nosso lucro. Telefone para a rádio e peça a marcha fúnebre de Chopin, ou a Dança Macabra de Saint-Säens. é gratuito, fazem-lhe companhia e são lindas de morrer.
sábado, 8 de abril de 2006
A extensão, a profundidade, as medidas do sentir
Eu tenho um amigo que é sábio. Não é só a cultura invulgar, a extensão e profundidade daquilo sobre o que se sabe. Procurou-me hoje, como o fazem os amigos quando não lhes aparecemos. Compreendi-o quando irradiou um sorriso acerca de terem nascido patinhos nos jardins da Fundação Gulbenkian; compreendeu-me quando lhe falei da capoeira da minha infância e da aflicção da galinha, que chocou o final dos ovos de uma pata entretanto morta, ao ver, o galináceo coraçãozito aos saltos, o que julgava serem os seus pintos, a atirarem-se para a água, logo ao saírem da casca. Eu tenho um amigo que é sábio e um sábio que é meu amigo, porque hoje, ao ter-me procurado, compreendeu nesse instante o tempo em que se era feliz.
sexta-feira, 7 de abril de 2006
Memórias de uma criada de quarto
Chamavam-se criadas no tempo da exploração serviçal, empregadas domésticas, nestes tempos de proletarização neo-vocabular. A do escritor Jorge Luís Borges chama-se Epifanía Uveda de Robledo, vulgo «Fanny». Alejandro Vaccaro, que diz andar a estudar a vida do escritor argentino há vinte anos, publicou um livro com as memórias dela, por ele coscuvilhadas. «Ninguém é herói para o seu criado de quarto»: a frase já a vi atribuída Hegel, a Platão e a Napoleão. Surpreendido em roupão e chinelos, Borges sai ridicularizado pela proeza. Magoa e ofende ler este livro. Nele conta-se que o biografado tinha uma estranha forma de se ver livre dos livros de que não gostava: abandonava-os, à vezes fazendo pacotes de que fingia esquecido aqui ou ali. Ou me engano muito ou este é o destino que leva! Abandono-o, mas em sítio onde ninguém o encontre. Este ano perfazem-se vinte anos que Borges morreu. Não tinham de o matar outra vez!
quinta-feira, 6 de abril de 2006
O verbo ter
Hoje a Natureza choveu invernosamente em dia de Primavera. Sol, só para a semana! Até lá, esperem e logo verão...
quarta-feira, 5 de abril de 2006
Rebentar de vontade
Eu tinha um blog chamado «A Revolta das Palavras». Num dia de maré vaza do meu interior, apaguei-o. Quando, arrependido por dentro e a disfarçar desenvoltura por fora, quiz repô-lo, o sistema já não o aceitou. Por isso eu hoje tenho um blog que se chama «Revolta das Palavras». Ter ficado sem o «A» foi o preço que a blogoesfera me cobrou pela minha leviandade supressora. Ora quando eu tinha um blog que tinha um «A» escrevia lá coisas que hoje escrevo aqui. Graças à amizade de quem estima o que eu escrevo mais do que eu que as escrevo, salvou-se quase todo o apagado. Isto por exemplo teria vindo para este blog, caso eu na altura o tivesse. Aconteceu no dia 27 de Fevereiro de 2005: «Sexta-feira a noite e estava frio, a porta da livraria, semi-cerrada. Lá dentro, о velho livreiro fechava a caixa do dia. Hesitante, entreabri. «Já fechamos, mas enquanto eu estiver por aqui, esteja a vontade», Fiquei, menos à vontade do que seria possível. O livreiro enganara-se nas contas, revia agora, meticulosamente, verba a verba, na ofídia fita da caixa registadora. Sortilégio invulgar num negócio sem futuro, aparecera-lhe dinheiro a mais: numa vida destas, só podia ser engano. Havia que desfazê-lo e ir enfim para casa, dormir um sono aritmeticamente tranquilo.
Privilegiado por um favor, tentei apressar-me, no fundo eu fazia apenas horas para um jantar. Trouxe um livro.
Com о fim-de-semana a esgotar-se agora, abri-o há pouco, antes de vir aqui. É de Yvette Kace Centeno, um livro já antigo. Nele, uma linha que eu desejava ter vivido assim, em vez de como me sucedeu:
«Deixo-me ficar fechada em casa até não poder mais. Até rebentar de vontade de fugir».
Privilegiado por um favor, tentei apressar-me, no fundo eu fazia apenas horas para um jantar. Trouxe um livro.
Com о fim-de-semana a esgotar-se agora, abri-o há pouco, antes de vir aqui. É de Yvette Kace Centeno, um livro já antigo. Nele, uma linha que eu desejava ter vivido assim, em vez de como me sucedeu:
«Deixo-me ficar fechada em casa até não poder mais. Até rebentar de vontade de fugir».
terça-feira, 4 de abril de 2006
O acaso a um euro
Num país em que a maioria dos que lêem são leitoras, eu tenho uma especial propensão por escritoras. Uma delas, como já percebeu quem me lê, é a Maria Ondina Braga, já falecida em Braga precisamente. Só que o destino tem momentos fantásticos de inesperado. Regressado de mais um dia de esgotamento profissional, achei que merecia dar umas voltas sem nexo pelas ruas do meu bairro. Àquela hora saíam dos escritórios, exauridos, os empregados por conta alheia, a vertigem do recolher, a angústia do atraso estampada no rosto, os nervos a expressarem-se em buzinadelas, os rancores na impaciência de cada gesto. Foi então que eu os encontrei, o pequeno ajuntamento de vendedores de velharias, já a empacotarem o que amanhã, uma vez mais, desembrulharão, para tornarem a expor, na mira de os vender, aquele um pouco de tudo já passado, onde há a novidade das surpresas. No meu caso foram duas. Falo aqui de uma delas. Como já dei a entender tenho uma predilecção especial pelo Graham Greene, sobre quem já escrevi em outro local. Então não é que ele ali estava, a «um euro», o seu livro «O Cônsul Honorário», naquela edição encadernada publicada em Junho de 1974 pelo Círculo de Leitores e que a Ondina Braga traduziu? Tenho-o aqui comigo nesta hora já tardia. Sei que não tenho tempo para o ler, nem à edição inglesa que comprara já nem sei onde nem quando, na altura em que comecei a reunir a sua obra.Mas fico-me por uma recordação, a de ter lido numa entrevista da Maria Ondina, em que ela se queixava de ter partido as costas a matraquear à máquina, traduzindo e traduzindo, para ganhar o seu magro sustento. Ao olhar para estas folhas amarelecidas, ao rever cada uma das suas letras que lhe enchem as páginas, eu sinto o alquebrar de um dia esgotante, o corpo carregado de dores, os dedos entumescidos, a alma entristecida, a miséria de tudo terminar a um euro, num jardim, sem nexo e por acaso.
domingo, 2 de abril de 2006
A árvore frondosa
Já vivi numa aldeola que tinha como único ornamento uma igreja sem estilo, uma árvore frondosa que a ladeava, daquelas centenárias, cujas raízes parecem querer arrancar as entranhas da terra e que me lembre nada mais. Junto a essa árvore havia um banco, daqueles vulgares bancos de jardim, a armação em ferro, o assento e o encosto em madeira. Caberiam nele uns três, bem anichados. Ao domingo, lembro-me de o ver ali sentado. Vestia-se a rigor, o fato completo, camisa branca, uma gravata de cuidado nó. Ficava por ali um tempo, o tempo necessário para estar sozinho. Cismava nunca soube em quê. Mais tarde disseram-me que era um militar reformado. A sua guerra, a última batalha que travava, agora era consigo próprio. Eu vivia ao lado do cemitério, ele hoje deve viver por lá, graças ao armísticio com que os deuses da guerra se apiedam daqueles que, na batalha da vida, não sabem vencer e já não têem que perder.
sábado, 1 de abril de 2006
O acaso do sol
Escrevo aqui há tanto tempo e nunca dei comigo a pensar o que pode querer dizer «a janela do ocaso». Um candidato a leitor, amigo, disse-me que não conseguia encontrar o meu blog sobre a janela do «acaso». Pois não, nem eu que já o tentei. Um dia destes, tentando defini-lo numa frase, escrevi que ele era o «blog de um ser neurótico, que escreve sobre a tragédia do existir». É em parte assim. Há em tudo isto um halo marítimo, e uma coloração poente. Mas há sobretudo uma dimensão de infinito e uma ideia de arrependimento pelas origens e remorso pelo passado. Culpando-me pelo que virá e desejando não ter vindo, os cotovelos fincados na balaustrada da vida, abandono-me em pensamentos. Se fumasse exalava-me pelas narinas do desejo, instantes de ardência, desejos de sol.