quarta-feira, 28 de junho de 2006

Passados os anos

É uma espécie de biografia que o José Gomes Ferreira escreveu e que encontrei, numa segunda edição, daquelas belíssimas da Portugália. Chama-se «A Memória das Palavras». Comecei a ler, ontem à noite, quase a cair de sono. Lembrei-me hoje de uma frase que lá vem, no prefácio, que na forma de uma carta ele dedica à sua Rosalia: «Aqui tens o meu passado. A parte mais pura do meu passado. A única digna de ti, minha querida companheira de tantos e tantos felizes anos árduos». Eu nem isso consigo escrever, passados os anos, tantos anos depois.

domingo, 25 de junho de 2006

A aura do contentamento

A essência e o afecto que ele transporta conferem a autenticidade à existência. O mais, e o que nele há de acidental são as contingências da vida, as inéricas, as adstringentes conveniências. É a aura do contentamento. Um dia descobre-se que não há perguntas possíveis, nem respostas admissíveis. Um homem perdido na física adocicada do rir, dá consigo na química salgada do chorar.

quarta-feira, 21 de junho de 2006

Trinta quilómetros

Um sonâmbulo ao volante pelas estradas do dever. A ânsia de um momento para poder parar. Agora nas auto-estradas já não há as bermas das estradas. Restam as áreas de serviço. Um homem olha e vê uma tabuleta azul. São só trinta quilómetros. O medo é o não saber se não fecharei os olhos até lá, definitivamente.

quinta-feira, 15 de junho de 2006

E uma muda de roupa

Três livros! O «Mandarim» do Eça, naquelas edições da Lello, em azul, encontrado a saldos num alfarrabista, a cinco euros, que está quase no fim, a Clarice Lispector que, sendo um livro de contos, se vai lendo um de quando em vez e enfim a Ondina Braga, porque sendo para ler toda, já vai lida no terceiro volume da prosa. Três livros e uma muda de roupa. Depois digo como foi. Hoje apetecia-me ir à praia, se eu gostasse de praia. Nem toda a gente sabe que eu escrevi isto. Nem toda a gente o entende. Ainda por cima hoje faz sol, um sol tímido, hesitante, um sol para quem gosta de ler e cega com o excesso de luz.

terça-feira, 13 de junho de 2006

Sem esforço nem angústia

Guardei para estes dias mais folgados o fazer aquelas coisas que há meses se arrastam, pendentes. O problema é que, devido precisamente à passagem do tempo, já nem me lembro bem quais elas são. O que, como se conclui, que o deixar andar é uma forma muito simpática de ver os problemas resolvidos e sem esforço nem angústia! E eu enganado estes anos todos, com a solução ao alcance da mão!

domingo, 11 de junho de 2006

O sono da lua

A lua foi dormir, depois de ter dado, estou certo disso, uma noite de muito divertimento e alguma alegria a muitos dos meus semelhantes. Companheiro deles, nesta viagem pelo tempo, anichados no planeta terra, à velocidade de translação de 1.783 quilómetros por minuto, fico feliz por eles, como se fossem eu. A lua foi dormir e com ela a segurança de que amanhã volta, menos exuberante, claro, até ao vazio total de se ter esgotado o seu ciclo de criação. Agora que a maré baixa, e é domingo, avançam banhistas em famílias e em casais e uns quantos solitários que a vida desirmanou ao encontro da ilusão refrescante da água, em busca de um horizonte longínquo que os retire de si e da sua mesquinhez terrena. A lua foi dormir sem que tantos tivessem ao menos nela reparado ou voltem sequer a reparar.

sábado, 10 de junho de 2006

Abreviando-se um homem nesta vida

Quando Manuel Laranjeira aos trinta e quatro anos de idade deu um tiro na cabeça, abreviando-se nesta terra, Unamuno escreveu que ele dera vida à própria morte. Comprei agora um livro sobre o seu misticismo pagão, ainda na esperança de que o mundo possa ter uma via salvífica para além dos deuses e aquém de um tiro. Laranjeira, escrevendo sobre a mocidade idealista, que foi a sua, lembrou quanto outrora se faziam excursões aos túmulos dos vencidos, hoje aos arraiais dos vencedores.

sexta-feira, 9 de junho de 2006

A mão

Trancado de manhã e de tarde trancado, rodeado de gente soturna, a ouvir e a vêr o lado feio e mau do mundo que o cerca. Dia após dia, ano após ano, floresce lá fora a primavera e sempre a um homem a viver no interior de um mundo sem paisagem nem natureza. Uma ânsia de um momento de paz, toma conta de uma pessoa que assim vive ou julga que assim é viver. Lembro-me de uma cena horripilante de uma mão hirta e enclavinhada, saída de um esburacado momento de uma casota em madeira, como se, através dela, todo um corpo se quisesse libertar. Ali dentro morriam sufocados, envenenados a gás, todos os membros de uma família. Aquela mão era uma tentativa de escapar ao inevitável, até que as forças lhe faltaram.

quarta-feira, 7 de junho de 2006

Violeta

Confesso que é uma paixão literária forte. Não a conheço pessoalmente mas li-lhe o segundo livro, linha após linha, com o coração a doer-me. Depois disso, procurei o primeiro livro e estou a lê-lo, muito lentamente. Soube que era paixão quando li num jornal que diziam mal da capa daquele livro que eu já li, a que chamou «Os meus sentimentos». Ofendi-me com isso, como se fosse comigo. Esta noite recebi a oferta carinhosa de um link para uma entrevista sua à TSF. Fica aqui. Vou ouvi-la. Até amanhã. Ela chama-se Dulce Cardoso, Dulce Maria Cardoso. A personagem do livro tinha o nome de uma cor que também é o de uma flor. Chamava-se Violeta.

segunda-feira, 5 de junho de 2006

Escrita mendicante

Assírio Bacelar, que deu nome à editora Assírio & Alvim, lembrou, numa recente entrevista, que os autores ganham entre 8 a 10% em cada livro, e que as grandes superfícies, sem arriscarem nada, ganham 45%. Há só uma correcção: é que os autores ganham quando ganham, pois muitas vezes ficam a olhar para as mãos, vazias. E, no entanto, nunca se editou tanto. Não são escritores a escreverem ficção, são escritores a viverem na ficção.

sexta-feira, 2 de junho de 2006

O desaforo dos aforismos

Com aquele estilo grandiloquente de falar de si, enobrecendo-se, Agustina Bessa-Luís publicou um livro de aforismos de que só agora dei conta, por tê-lo encontrado na Feira do Livro. Amarga desilusão, porém: é uma compilação daqueles que ela foi semeando pelos seus muitos livros antecedentes a 1988. Conhecendo-se o apreço que Agustina tem por Agustina, já é azar ter aberto esta obra logo com «um grande livro não pode ser medido pela desordem do seu rosto, mas sim pela grandeza dos seus aforismos». Percebe-se agora porque é há quem se irrite com ela, mesmo os que gostam do que escreve, incluindo os aforismos.