terça-feira, 29 de agosto de 2006

Longínquo

Eu, que não me sinto branco nascido em África, e nasci em Angola, nem europeu se isso não for Portugal, penso agora no Quénia longínquo. Um sentimento apátrida, invade-me o ser, como se um nómada, para quem tivesse morrido a família primeiro e lhe tivessem destruído a aldeia depois.

As leis da Natureza

Claro que eu tinha de ir ler imediatamente Dostoiévski ao chegar. E foi ao lê-lo, naqueles seus «Cadermos Subterrâneos» que me encontrei «com um homem que tivesse, para cúmulo, a especial infelicidade de viver em Petersburgo, a cidade mais abstracta e mais premeditada do planeta». Tudo isto é discutível, eternamente polémico, pretexto para uma interminável discussão para «chegarmos, mediante as mais inelutáveis combinações lógicas, até às mais repugnantes conclusões». Ao ver hoje aquela cidade-cenário, palco de uma itinerante comédia de rua, a contínua passerelle da beleza efémera e do exibicionismo do que é bem, sente-se que é de facto «impossível perdoar às leis da Natureza».

sexta-feira, 25 de agosto de 2006

As ideias abstractas

Às vezes acontece, quando se viaja, pegar-se num livro à medida da bagagem que se leva, por causa do espaço, do peso, do tempo livre de que se dispõe. Poucas vezes sucede encontrar um livro que se compatibilize com o problema do local para onde se viaja. No caso um dos personagens do que leio tinha perdido há muito a crença na perfeição da espécie humana; pior, estava já amargamente convicto de que os indivíduos faziam sofrer os outros pela sua brutalidade, a sua malícia, a sua falta de compreensão. Por isso mesmo convivia melhor com as ideias abstractas da reforma social, a igualdade de oportunidades, em suma, a fraternidade humana. Comovia-se, porém, com os milhares de outros que, não ambicionando a liderança, seguiam um ideal com paciência e pobreza.

quarta-feira, 23 de agosto de 2006

O labirinto

Imagine-se num local onde nada se entende do que dizemos e não entendemos o que nos querem dizer. Imagine-se um homem diminuido pela arrogância do que o cerca, perdido no labirinto do que procura. Pode ser uma cidade ou um momento da vida. Pode ser estar de férias ou o desejo de tentar sair delas. Imagine-se querer compreender e não conseguir sequer entender.

terça-feira, 22 de agosto de 2006

O mundo oblíquo

Leo Tolstoi tinha como hobby fabricar sapatos, nos intervalos de uma extensa e intensa escrita. Vivia com modéstia, numa das suas casas servido por dez criados. Dostoievsky sofreu na Sibéria a cadeia e o exílio e definhou, esvaindo-se em literatura. O primeiro vivia o problema da mística, o segundo o da angústia dos homens. Cada um deles tem as suas casas evocativas, a do segundo uma casa de esquina, como a de tantos dos seus personagens. Gorki também teve casa, oferecida pelos sovietes mas, como se simbolicamente, está encerrada para obras. Falta quem? Faltam tantos! Maiakovsky, por exemplo, oblíquo, vanguardista, provocador, suicida. No meio das suas vidas surgiu o tumulto dos engenheiros de almas, o anseio do homem novo. Hoje já nada sobeja. Numa das portas do Kremlin está o símbolo da Rolls-Royce, talvez por causa do carro luxuoso usado por Lenine, a bandeira do proletariado. Quantos milhões deram a vida por tudo isto. O motorista que nos conduz benze-se ao passar em cada Igreja. Hoje, já só o próprio Deus o poderá surpreender.

domingo, 20 de agosto de 2006

Museu ao ar livre

Viajo. Estou num local onde os computadores acentuam de modo diverso, sem que eu possa usar, ao escrever, o nosso modo de acentuar, obrigando-me a usar palavras que omitam o que por aqui inexiste. Curiosa forma de escrever esta, confinado por exemplo a ter de dizer sim, sem a possibilidade de acesso a uma palavra que exprima a negativa. Estou longe de casa, numa cidade com pouco mais de duzentos anos, um museu ao ar livre, replicando em arte o que de melhor a Europa tinha e as colossais fortunas podiam comprar, caixa de bonecas, de corpos espectaculares que se pavoneiam ante a rua do desinteresse. Oriundo de um Portugal com mais de oitocentos anos de vida independente, trago comigo o peso dos escombros acumulados com que nos fomos fazendo. Tenho saudades, talvez por hoje ser domingo, o dia do aborrecimento universal.

quarta-feira, 16 de agosto de 2006

Acontece

Vou viajar. Fiz praia, quase sem lá ir. Saio, sem ter conseguido retomar o primeiro livro da Dulce Cardoso, que encentei há vários meses, o que se chama «Campo de Sangue», já foi prémio «Acontece» e agora a editora despacha a saldos. Hoje ainda peguei nele para me decidir a levá-lo na mala. Uma das últimas frases que ali tinha sublinhado trazia a nostalgia de uma colónia de férias onde eu nunca estive: «no útimo dia de férias deixaram na aldeia uma fila ordeira de pés tristes». Acho que o Verão está a acabar, ou pelo menos as férias. O tempo começa a arrefecer e eu sinto-me cansado já delas.

terça-feira, 15 de agosto de 2006

Sua mercê

Nunca me arrependa eu tanto de uma coisa como me arrependo de mostrar-me na fragilidade que os heróis quotidianos nunca admitem. A vida de hoje é o mundo do êxito, a sociedade o podium dos vitoriosos. Peço pois o favor a todos quantos lerem o que eu possa aqui chorar, de se rirem disso às gargalhadas. Não para que eu ganhe razão, mas para que ganhe ao menos alguma vergonha. Para tristes figuras já basta as que fazemos, escusamos de as contar. É nisso em que a blogoesfera é o muro das lamentações que eu me repugno de mim. Com tanto motivo para me exibir, ando nisto da tristeza e da comiseração enjoada à mercê. Restam, eu sei, uns quantos sincera e carinhosamente condoídos. É a esses que eu peço que desandem. Ridículo por ridículo, prefiro-me assim, pobre e mal agradecido.

segunda-feira, 14 de agosto de 2006

Feriado

Há dias em que devia amanhecer logo o dia seguinte. Era assim, como se uma folha a menos no calendário. Amanhã, por exemplo, é feriado para que nada aconteça na vida de muita gente. Podia ser hoje. Para mim, devia ter sido hoje.

O espanto

Ana, a personagem de Clarice Lispector no seu conto «Amor» acabou por «descobrir que também sem felicidade se vive». Antes era «uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável». Vi esta noite, ao chegar a casa que começara a ler o livro, sem o ter terminado e, afinal, sem o ter compreendido. Voltei a ele, tal como ela, com «o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada». A diferença, é que esse novo saber sentido em Ana fora um lar quem «perplexamente lhe dera».

sexta-feira, 11 de agosto de 2006

A felicidade menor

Ainda consegui ler ontem uma conferência que o Jorge Luis Borges fez na Universidade de Belgrano, em 1979, dedicada ao livro. Trata-se de um ensaio erudito, o livro visto por alguns clássicos, mas que é sobretudo um contraponto entre a forma escrita e a forma oral. O livrinho, onde vem essa conferência e outras quatro chama-se, aliás, «Borges Oral». Nela, o seu autor diz que reler é mais importante do que ler e precisamente para vir aqui deixar esta nota, reli esta manhã o que ontem lera. E que ficou? Por um lado que «se lemos um livro antigo é como se lêssemos todo o tempo que decorreu desde o dia que foi escrito para nós», por outro que «uma forma de felicidade é a leitura; outra forma de felicidade menor é a criação poética, o que chamamos criação, que é uma mistura de esquecimento e de recordação do que lemos». Claro que eu transpus isto para o modo de estar com os outros, para o folhear no outro cada interstício do corpo e cada recanto da alma. Li pois e reli e descobri assim a infelicidade das páginas em branco e de um tempo decorrido em que nada conseguimos ler. Por isso a felicidade menor desta escrita.

quinta-feira, 10 de agosto de 2006

O mais azedo dos suores

A vida é feita de acasos. Terminei, enfim, a leitura do livro de memórias do José Gomes Ferreira. E como decidi abolir a diferença entre os dias de férias e aqueles em que trabalho, como quem vive feliz uma infelicidade, depois de ter ido consultar, nesta tarde de calor, um processo a um qualquer desses tribunais, passei por uma biblioteca pública onde encontrei «A Gaveta de Nuvens» outra obrinha sua, de crónicas e apontamentos. Sentei-me, anónimo, num canto a ler. A meu lado, um anafado munícipe usava aquele local de cultura para ler os anúncios do imobiliário, secção «condomínios, vendem-se».
José Gomes Ferreira também tirou o curso de Direito e tentou, sem continuidade ou empenho, a advocacia. Passou como obscuro cônsul na Noruega mas foi a viver da pena, escrevendo de tudo, desde anúncios publicitários a traduções para o cinema, no meio disto um livro policial como autor anónimo, que trabalhou «na escravatura do suor mental (o mais azedo dos suores)», escrevendo andante, em intervalos.
Voltei há pouco à casa onde estou, com a cabeça cheia de pensamentos sobre tudo isto. E eu que escrevo curto, por ser feito daquela «carne tímida» de quem acha que tem pouco a dizer, encontro-me hoje, nesta tarde andarilhante, com a cabeça toldada de ideias, que se atropelam.
Primeiro, que pouco vale uma vida literária. Impressionou-me, comoveu-me mesmo, ver, pela sua palavra, trazidos do pó indiferente do esquecimento, tantos nomes de escritores e artistas, génios no seu tempo por um critério exasperado e exigente e hoje absolutamente olvidados. E causa-me funda impressão, pela razão inversa de o ter lido, a ele Gomes Ferreira, desejoso por raiva de apedrejar as montras das livrarias de Lisboa onde se não encontrava então nem um só dos livros do Teixeira de Pascoaes, já só nos alfarrabistas «para educação das traças».
Depois, neste «labirinto de conversa inútil», dou comigo a pensar o nada que vale um livro. No caso, os dele, editados pela Moraes, que já faliu, pela Portugália, que já morreu, e de que hoje se encontram nas chamadas «livrarias», que mais não são do que armazéns de papel temporário, os mais ridículos, os menos característicos, os que menos dizem do grande escritor de quem falamos. Mas fere-me, sobretudo, o meu livro, este exemplar seu que li e sublinhei e a que quase arranquei as folhas de tanto o ler, onde consta o sangue arrefecido de uma inscrição, manuscrita por alguém, para quem este volume já foi um momento qualquer na sua vida: «Na Parede, 8 Set. 66, quando os anos não têm sido uma parede». Assina: Guida. Não sei quem é, ela não sabe que eu a encontrei. Entre nós, se ainda estamos ambos vivos, há o acontecimento morto que lhe atirou o livro para um adelo, onde o comprei, ao desbarato, amarelecido e esquecido, como se escrito por olhos enormes «da existência de milhões e milhões de lágrimas do mundo por chorar». Tudo isto faz com um homem não queira ser aquilo que é.

quarta-feira, 9 de agosto de 2006

O reduto da vontade

Hoje, dia nove de Agosto, uma quarta-feira de sol e de calor, com tanta gente de férias a não escrever por não poder, estou aqui eu a não escrever por não querer. O silêncio tem uma vantagem, raramente se dá por ele.

terça-feira, 8 de agosto de 2006

A modos de que

«Hoje todo o cuidado com os homens é pouco. E mesmo com as mulheres, que já andam ao mesmo», dizia ela, uma vulgar criatura, meia-idade indefinida, alombando sacos de plástico, chanata a arrastar, vinda com outra do mini-mercado, atulhada de mercearias gordas e bebidas adocicadas. «Sim, o parvalhão, a ver-me sozinha na estrada e a oferecer-me boleia, a abrir o vidro do carro, a abrandar a marcha, o metediço, filho de uma grandecíssima vaca. «E tu conhecia-lo, Maria?», inquiria a companheira, magricela de ressabiada, repartindo a carga dos víveres, um garrafão água em cada mão, o jornal amarfanhado debaixo do sovaco suado. «Ora se conhecia. Então não se conhece logo pelos modos! E com as gajas é o mesmo, que já andam desenfreadas ao ataque que ainda outro dia uma...». Foi hoje de manhã. Separámo-nos numa esquina da rua. Eu redobrado de cuidados, não vá toparem-me pelos modos, assim a modos de que.

sábado, 5 de agosto de 2006

Borges, perdoa a minha cegueira

Eu sei que é uma vergonha: mas detestava o Jorge Luís Borges só porque um desses arrogantes peralvilhos da nossa cultura, impante de opinião pomposa, o idolatrava. Só que nunca o tinha lido. Hoje, indiferente ao meio, qual cego, descobri-o, tacteando-o. Confesso o meu sentimento de reprovação para com o meu passado vergonhoso. Ando a juntar, livro a livro, cada um dos seus livros e os livros sobre a sua pessoa. Aqui na Feira do Livro de Faro vendia-se o pobre do Borges integral e traduzido a metade do preço. Recusei comprar. Trouxe, para acabar de o ler o «Borges verbal», colectânea de citações, algumas talvez apócrifas, compiladas por Pilar Bravo. Leio-as, por vezes acrítico de maravilhado a essas frases desconcertantes. Arrependido do tempo perdido, rio-me, como se de mim, de uma piada deprimente que circulava em Buenos Aires a seu respeito e que ali vem citada no prefácio: «Borges é uma das provas da inexistência de Deus. Porquê? Porque se Deus realmente existisse, tê-lo-ia feito mudo e não cego».