Quando uma nave espacial reentra na atmosfera sofre um choque que quase a destrói. Quando uma criança nasce do ventre de sua mãe, grita de dor, como se ao entrar-lhe o ar exterior nos pulmões, lhe entrasse o desejo de sufocar. Quando o mundo da ilusão reencontra o real, sente-se a vontade da loucura, porque ao menos aí a agonia é medicada. Há é claro sempre a solução de se partir de férias e com isso a esperança de que no regresso esteja já, enfim, tudo morto.
quarta-feira, 30 de maio de 2007
sábado, 26 de maio de 2007
A herança da raça
Graças ao meu amigo, que está expatriado em Macau, estive hoje, um sábado com prometida chuva e surpreendente calor, com o Wenceslau de Moraes e um seu livro de paisagens escritas sobre a China e o Japão.
Wenceslau José de Sousa de Moraes, oficial de Marinha, fixou-se em Macau em 1889, transferindo-se definitivamente em 1898 para o Japão, onde viveria os últimos trinta e um anos da sua vida, sem mais regressar.
Ser delicado, qual sismógrafo capaz de registar a mais pequena vibração humana naquela terra de terramotos, deixou-nos páginas de inteligente e ardorosa visão sobre o Oriente «esfíngico e fatal», como lhe chamou Fernando Pessoa, local de exílio voluntário e de fuga redentora, a quem entregou a alma e que lhe recebeu os ossos.
Frequentemente sorumbático por natureza da alma, e erraticamente apaixonado por herança da raça, ele foi no Dai-Nippon, o «senhor Portugal».
Lembrei-me disto esta manhã, ao acordar cedo, os pássaros a cantar: «Neste país japonês, onde parece que os seres, homens e bichos, nasceram e vivem num banho permanente de sorrisos» escreveu ele, o que viu que «o riso é a linguagem mais em uso nesta terra». Assim eu.
quarta-feira, 23 de maio de 2007
A alma japonesa
Vivendo uma vida isolada, tenho muito poucos amigos. Um deles deixou-se ficar por Macau. É daqueles que compreendem quando não lhes aparecemos e respeitam o nosso exílio, poupando-nos à vergonha de ter de expor em público as nosas chagas. Mandou-me agora dois volumes da obra de Wenceslau de Moares, que está a ser ali editada, aguçando-me o apetite por ler tudo. Esta manhã em que, exaurido, permiti que a preguiça me desse descanso, li a contra-capa de um deles: Aprendi que não se beija uma japonesa, ainda que na face, sem a ofender, «mas poderás talvez beijar, sem que a musumé o saiba, dissimulando o gesto... o seu vestido».
Claro que, visto pelos olhos da contemporaneidade, pelo espírito prático dos dias de hoje, pela banalidade grotesca em que se tornou a subtileza, tudo isto é ridículo, mesmo eu, disto leitor, num dia como o de hoje, numa manhã como esta.
domingo, 13 de maio de 2007
Andar com o janêro!
«Esta noite nã dí dormido nada!... – Atã perquém? – Os gatos andam p’aí com o janêro, era uma miada qu’a casa até tremia...». Descobri este português magnífico, antigo, viajando com insónias e sem ao menos uma maçã para entreter o dente e aquietar o corpo em sobressalto. Foi em Monchique, em «O Parente de Refóias». Glossário risonho, cheira a sol e a sul, o que a mim, ser bisonho e implicativo é como se fosse do outro lado do mundo da minha neurose, terra onde está sempre a chover.
sexta-feira, 11 de maio de 2007
A vida possível
Ouve-se aqui o amanhecer através do cantar dos pássaros e depois do gorgorejar da água das fontes. Lá em baixo uma cidade com as suas vulgaridades e com os seus recantos de reservada beleza. Preparado para esgotar mais um dia, trancado num sala e de tudo isolado, olho para o livro que trouxe expectante e que a meu lado espera ansioso que eu o leia. «Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível», ainda consegui ler ontem, já os olhos a fecharem-se, impossíveis. Clarice Lispector escreveu-o. Ama-se um mulher que só se conhece através do que escreveu. Eu sei que ela está morta. Guardo por isso esse segredo, para tornar a vida possível, a única vida que já me resta viver.
domingo, 6 de maio de 2007
A mulher a dias
Ontem, dia de preguiça deliberada, ainda consegui arranjar tempo para iniciar a leitura de uma novela da Clarice Lispector que tem o título apelativo «Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres». Trata-se daquele livro em que parece que perdemos a página inicial, porque começa «, estando tão ocupada».
A vida deveria ser assim também, iniciar-se com uma vírgula e sobretudo não ter ponto final.
Trata-se da história de uma mulher que descobriu que «não tinha um dia-a-dia, mas sim uma vida-a-vida», e que não usava «perfumes que a contradiziam».
Como é possível que eu hoje, contradizendo-me, nem tempo tenha tido ou, pior do que isso, disposição haja encontrado para voltar para os braços da perfumada leitura, na minha noite-a-noite de trabalho forçado!