terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Obrigadinho à mesma

Era o único táxi naquela praça deserta. Quando entrei ouvia a Sétima Sinfonia de Beethoven. Mais do que ouvir a Antena 2, o que é raro entre os taxistas, tinha saudades da Rádio Luna e dos carolas que a sustentavam a partir do Montijo para garantir um oásis de qualidade num mundo de mediocridade comercial.
Lamentámos durante o percurso a vergonha de o sinal da rádio clássica ser tão errático, tão sujeito a interferências, quando por ser da rádio pública devia ter mais meios para ser melhor, quando pela música que difundem qualquer ruído é uma agressão à sensibilidade do ouvinte. Quando chegávamos perto do meu destino dava-me conta do seu gosto pelo barroco. «Se o senhor não tivesse entrado no meu táxi, eu também estava bem», rematou-me à despedida, em jeito de amabilidade.
Fiquei a pensar nisso e na funda filosofia que a frase contém e no modo verdadeiro como a disse. Era o único táxi naquela praça deserta, fechado que estava no mundo em que o belo pode ser interrompido pelo abrir da porta por um inesperado freguês e com ele a entrada do banal e do boçal. «Mas olhe, amigo», rematou ao deixar-me, «obrigadinho à mesma, foi um bocadinho menos de música por um pedaço bom de conversa».

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Escrito algures

Eu tenho que acreditar à força na predestinação, porque encontrei hoje, num alfarrabista o livrinho que o Eugénio Lisboa escreveu sobre o seu José Régio e à tarde, na Guia, o próprio Eugénio Lisboa, a perguntar-me pelo meu Graham Greene, sobre quem eu publicara, e ele não sabia, na Mea Libra, um estudo sobre a sua biografia secreta, isso na data do seu centenário.
E porque nesse livro sobre o Régio, que se editou em 1957, ele conclui que com o poema «Sabedoria» o escritor de A Velha Casa, que eu fui ver a Vila do Conde, em dia de extraordinário acaso, «chega, coincidentemente, ao máximo desespero e à máxima serenidade», eu que me lamuriava então de não mais ter escrito nada sobre nada com afinco e com sistema, estou aqui cheio de energia e de entusiasmo. E se eu seguisse o que está escrito algures que vai ser?

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Clízia

Por causa de uma obrigação a que me amarrei, pois não há meio de aprender a dizer que não, vim no comboio a estudar o Maquiavel. Não é ler, que isso faz-se, enfim, como quem leria por estranho desfastio o Orlando Furioso do Ariosto ou por insólito deleite as traduções do italiano feitas pelo Vasco Graça Moura ou relesse mesmo, como se fossem livros novos, os Dostoievski's agora traduzidos do russo ou o Musil enfim traduzido pelo João Barrento, só que nunca mais saindo das desventuras do pupilo Törless.
Não é ler, é estudar, de lápis na mão, a sublinhar, entrando pela errática cronologia das suas obras, pelas dúvidas sobre a sua formação humanista, pelas ambições venais do Secretário, e, chegava o comboio ao Pragal, o Tejo à vista, entrando eu pelas intimidades de saber se a Clizia, a última obra sua, uma peça sobre os efeitos devastadores do amor, representada dois anos antes da sua morte, não seria, em aguda e dolorosa consciência, a comédia da velhice, o crepúsculo senil dos ardores impossíveis, a morte anunciada do amar o amor que lhe deu seis filhos, um casamento, e o enamoramento pelos jogos de poder e sedução.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

O porvir da nostalgia

Já o tinha visto, ao livro de Jean-Jacques Lafaye, que é mais uma biografia de Stefan Zweig, o austríaco que ressuscitou agora para os escaparates, depois de se ter suicidado, no Brasil, sua pátria de exílio, onde se matou conjuntamente com sua mulher, abrindo a clareira do insólito facto e a dor do desconhecido fim na alma dos seus muitos leitores.
Tinha hesitado em comprá-lo, porque anunciava que tinha uma apresentação escrita por Mário Soares, que considera essa sua introdução «honra imerecida» e «desnecessária» e, a meu ver, despropositada. Mas, enfim, o nome de Soares é sonante e o mercado editorial, magro de vendas, gosta disso.
Comecei ontem a lê-lo, devagar, porque tem uma letra miúda, com dificuldade porque o meu estado de espírito não é o melhor. É uma narrativa em que o discurso por vezes entra na primeira pessoa, transformando-se em auto-biografia, um livro que fala da «sua intimidade com as as palavras, companheiras de cada momento, sua única fidelidade absoluta». No momento em que parei o autor explicava que para o autor de «Vinte e quatro horas na vida de uma mulher», a pobreza «é uma abstracção». Talvez, mas a sua maior riqueza foi a capacidade de sentir, com distância crítica embora, e sobretudo saber dizê-lo. O livro chama-se «O Porvir da Nostalgia».

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Tiroteio editorial

Consegui creio que ontem, porque os dias e as noites já se me confundem na memória, e os feriados e as pontes ajudam à confusão, dar um salto a uma das FNAC's. De repente apercebi-me que o regicídio tinha desencadeado um torvelinho de livros, sobre os mortos e os seus matadores.
Ao cruzar-me pelo escaparate das novidades quase ribombavam os ecos da carabina Winchester 1907 do Buiça e da pistola Browning calibre 7.65 do Costa, mais a fuzilaria da Guarda Municipal.
No panorama editorial as efemérides são um negócio a prazo, os escritores a esgravatarem com um olho no calendário. Hoje felizmente estive trancado a trabalhar quando não levava com os sermões do Padre António Vieiria e com os que nele descobriram o visionário de um mundo por haver. Passava, qual duche escocês, do jacobinismo ao jesuitismo ao virar de uma estante.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

Trama

Tinha prometido que o faria e hoje arranjei uma nesga de tempo para o fazer. Fica na Rua S. Filipe Nery, ao Rato, a rua que se sobe ladeando os correios, onde era o velho armazém da Livraria Almedina. Em 1981 fui lá ver chegar, vindo da tipografia, o meu livro de processo penal, impresso na Tipografia Lousanense. É uma livraria, uma aposta jovem. Chama-se Trama.
Fico sempre com o coração apertado cada vez que entro numa nova iniciativa que tenha a ver com livros, imaginando a dificuldade quantas dificuldades há em vingar um empreendimento cultural.
Encontrei um livro que não conhecia, alguma «correspondência» entre o Jorge de Sena e o Vergílio Ferreira. Logo a propósito, a abrir, uma carta do autor do hoje desaparecido «Mudança», escrita em 5 de Fevereiro de 1950, a pedir que lhe comentasse, em crítica, o livro que editara a expensas próprias. É tocante: «rasamente e miseravelmente lhe confesso, portanto, que desejo a discussão para vender o livro. Diabo, seis contos é peso desconforme para o orçamento de um funcionário público».
No último dia desse ano, Sena pedia-lhe, em carta: «e agora posso pedir-lhe um favor que V. fará se puder ou quiser? Esta edição obriga-me à venda certa de uns tantos exemplares. Vê V. possibilidade de me colocar alguns aí em Évora?». Em 4 de Janeiro, chegava-lhe a desanimadora resposta, vinda da Rua Mesquita, n.º 28: «só lamento não descobrir posibilidades, ao menos para já, de colocar alguns exs., isto porque o mercado das minhas relações está saturado pelas frequentes vendas no género. Versos, romances, desenhos, tudo me tem vindo bater à porta, nestes tempos de futebol e de crise».
Hoje, outros Senas, outros Vergílios Ferreiras, escrevem cartas assim, «nestes tempos de futebol e de crise».