A arte de contar de Jorge Luís Borges não é apenas o saber condensar em poucas páginas uma biblioteca de ideias, mas o supremo saber ver tão profundamente cada uma das coisas que, sendo cego, só podiam estar nas entranhas anímicas de si. É impossível que este homem tenha morrido.
Encontrei há uns dias mais um dos seus livrinhos, na língua original. Trouxe-o comigo e como tantas vezes me sucede, comecei a lê-lo do fim.
Servido de uma memória de prodígio, de um cultura de excepção, o que mais maravilha em Borges é a capacidade de imaginar o irreal possível, tornando quase o absurdo desejável. Com ele o que não há, devia ser.
No caso, falava dos Yahoos uma inventada tribo de estupendos seres, que moravam em Mlch, nome que só parece invulgar a quem julgue que fazem falta vogais numa língua e a língua deles, povo estranho em que só alguns tinham nome - e para que haverá tudo e todos de ter nome? -era formada por monosílabos em que cada um traduz uma ideia geral , como nrz, por exemplo, que significava dispersão de manchas e tanto podia querer dizer céu estrelado como leopardo ou até um bando de aves ou tantas outras coisas, tudo dependendo do contexto e da expressão facial de quem dissesse, pelo que era impossível escrever-se, já que o idioma yahoo pressupunha que as pessoas falassem umas com as outras, não que se lessem, as ideias e os sentimentos expressos através de todo o corpo e seus gestos.
Mas vinha isto a propósito de tal excepcional povo ter um sistema numérico contado pelos dedos em que apenas quatro dígitos individualizavam o mundo da quantidade e assim um, dois, três, quatro, muitos, o polegar correspodendo ao infinito.
Ficou no presente real esse insólito sistema fabuloso de um passado inventado: perguntados sobre se vai tudo bem, erguemos o polegar para dizer que sim, o tudo bem, esse dedo a dizer da incontável felicidade do ser.