Tenho uma biografia do Jorge Luís Borges, extensa, profunda, erudita, escrita por um professor de Oxford especialista em Cervantes, Edwin Williamson. Tenho outra feita com base em depoimentos da sua criada de mais de trinta anos, Epifania Uveda de Robledo. Acho que são ambas fundamentais. E tenho a fotobiografia que a Teorema traduziu, escrita por Alejandro Vaccaro onde estão rostos e expressões, tudo aprisionado para a posteridade, entorpecidos pela pose do instante. E sei que hoje há troupes que se digladiam em Buenos Aires pela posse da memória deste homem e uma viúva que se bate, herdeira, pelas edições do que o indefeso morto não quis que se reeditasse. E sei que é chic dizer-se agora à esquerda «sim, Borges» como ontem era politicamente correcto detestá-lo, porque era de direita.
Foi por isso um bem ter nas mãos a pequena biografia que Jason Wilson escreveu em 2006 e a editora Fio da Palavra Editores traduziu este ano. Por ser um livro inteligente.
Vou a meio e aprendi que, esgotado por pulsões inconsequentes, sempre apaixonado e desgraçado em amores, este homem soube ser uma realidade permanente independentemente da sua provisória pessoa. Viveu a vida através da literatura, antes de ser cego. Aconteceram-lhe muitas coisas, porque leu.
A sua vida exterior é monótona, as entrevistas repetitivas, não há biografia possível da aparência. Há a obra.
Uma vez, na rua, perguntaram-lhe se era Jorge Luís Borges. Irreverente, respondeu: «Às vezes». Naturalmente.
Há um passo do livro que me fez parar e pensar e vir escrever já aqui. «Cada momento que vivemos extingue todo o passado, ao mover-se para o futuro». Eis porque o budismo sabe que o passado é incerto. Verdadeiramente «Deus ainda não criou o mundo», escreveu na narrativa Os Teólogos, para o livro El Aleph. Saber isto é descobrir a existência, depois de termos julgado existir.