Deve haver um qualquer momento em que um autor, cansado de dar corda às histórias dos outros, se intromete na própria narrativa. Não apenas como o Alfred Hitchcock, que autenticava cada um dos seus filmes fazendo-se filmar, como numa piscadela de olhos ao espectador, num canto da cena, discreto mas perceptível, mas a aparecer sim de modo ostensivo, por vezes fulgurante, de dedo no ar, a dizer «pára tudo agora, que aqui estou eu!».
Sucede assim até com o sorumbático Vergílio Ferreira que se esvaíu, paciente, em favor das personagens a que deu vida, escritor sacrificado, ao serviço do seu dom, a letra miudinha, a tábua nos joelhos. Notei isso esta manhã de nevoeiro. É no capítulo XXVIII do Até ao Fim, umas das suas obras finais:
«- Mas os pinheiros tiram-nos o sol da casa - diz a mulher do V. F. - Já cortei alguns, mas tenho de cortar mais. Nem posso ter um canteiro de flores.
« - Mas um pinhal é bonito - disse eu.
- Não são precisos tantos pinheiros - disse ela. -E estes aqui em cima da casa estragam-na e tiram a luz».
- É inútil - disse V. F. - Minha mulher é pinheiricida».
Eis. Não será um momento de grande literatura, com estes «ele» e «ela» a simplificarem o texto, mas é uma página de indesmentível verdade e essa vale mais, quando surge, assim espontânea, que o melhor instante de estilo que ali estivesse.
Nem sempre é bela e raramente é trabalhada a verdade da existência, mesmo vivida através da escrita.
«Mas V. F. deve ter-se imaginado diante dos alunos e disparou. E disse que sempre disse que escrevia para estar vivo. Mas já outros vieram a dizar o mesmo e portanto já não e verdade».
A casa com os pinheiros era em Fontanelas. Ainda lá está. Fui visitar a sua verdade há uns anos, num mau momento. Reecontrei-a hoje na forma de literatura e parece ficção.