«Contar a minha vida. Sempre que me falam nisso, imagino-me sentado num banco de cozinha, com um grosso camisolão, ombros caídos, a olhar por uma janela alta e estreita o que ela deixa ver da floresta. Alguém deixou um machado na peque na clareira em frente da janela. Andarão a rachar lenha. Grandes aves esvoaçam lá por fora, não muito alto decerto. E, além disto, silêncio. O pro fundo silêncio do que não volta mais. Mas que floresta? Nunca vivi em nenhuma flo resta. Nem sequer perto de. Talvez uma lógica in terna — penso então — comande os próprios des mandos do nosso pensamento. E esse indivíduo mais ou menos ruço, no meio da cozinha lajeada, olhando o que não existe, queira dizer apenas que tudo foi bastante diferente do que eu teria deseja do. Ou será a suspeita (uma quase certeza) de que contar a nossa vida é impossível. Por isso, à ideia de lembrar o que vivi e como, correrei a meter-me na pele de um qualquer em que mal me reconhe ço. É o que se chama atropelamento e fuga». É Mário Dionísio na primeira pessoa, editado pelo saudoso O Jornal. Lê-se na Casa da Achada, um lugar em sua memória, repleto de iniciativas e de entusiasmo.