Não resisto a contar-vos aquela história exemplar que o Mário Dionísio deixa na sua autobiografia que ontem li. Corria o ano de 1943. Como forma de divulgação da cultura mas, claro, também de agitação política, um grupo de «amigos», entre os quais Sidónio Muralha, Fancine Benoît, Alexandre Cabral e o próprio Dionísio organizam militantemente na que hoje se chama a Casa do Alentejo, então denominada Grémio Alentejano, uma série de conferências. A primeira delas, proferida pelo matemático e figura de referência da oposição ao regime, Bento de Jesus Caraça, correria sem problemas de maior. Casa cheia, os eventos prometiam sucesso para os fins políticos em vista.
Já quando da segunda, tudo evidenciava que ia haver sarilho, na sala apinhada a mostrarem-se aqui e além os infiltrados provocadores, ali colocados para gerarem o boicote.
No momento em que o conferencista, o maestro Fernando Lopes Graça, a meio da sua prelecção, colocava um disco para ilustrar uma qualquer particularidade da música medieval, salta da boca de um deles em surdina um dichote achincalhante e apto à confusão que, num ápice, se generalizaria: «vira o disco e toca o mesmo!».
O efeito foi um rastilho. Apanhada de surpresa a sala reagiu, em exaltado tumulto. Segundos depois a pancadaria generalizava-se. «Cães à solta», lhes chama Dionísio, os «mercenários», agora em plena acção, «excitavam-se a si próprios». Aqui um berro vindo do seu magote «Quem é que disse morra a Pátria?» e de além, do mesmo grupo a resposta orquestrada: «Viva a Pátria! Viva Salazar!» e logo a pronta retaliação verbal e física porque bater, por vezes, em caso de aperto, chega a ser uma excelente resposta.
Sucede que o Alexandre Cabral, que trabalharia na Carris, havia trazido um grupo de operários, daquela empresa, enrijecidos pelo trabalho braçal e, como se adivinha, no meio daquela refrega, ei-los em acção, com grossa artilharia dos seus afoitos punhos, a abrir clareiras entre a mole dos atrevidos esbirros.
No meio, e eis o momento do riso, Bento de Jesus Caraça, a sua figura imponente, contemplando a batalha campal que se instalara, maravilhava-se como é que ainda havia gente disposta a «bater-se pela cultura».
Bater-se no sentido próprio do termo, claro, à porrada, forma directa de as ideias entrarem dentro das cabeças, rachando-as!