Dirão que é o fetiche do voyeurismo, ou o desejo de surpreender nos grandes a minha própria vulgaridade, consolando-me e menosprezando-me um pouco menos, tudo sentimentos dos insuficientes. Mas gosto de ler cartas de vultos da cultura de que conhecemos apenas a sombra das biografias ou a luz da sua obra.
Desta feita consegui ler, em dois fôlegos, aquelas que, a partir de Paris, António José Saraiva, trocou com Luísa da Costa entre 1961 e 1965.
Cartas de um apaixonado pela cultura, a viver a revolta controlada do desprezo a que havia sido votado desde que deixara, exigente, as fileiras de onde surgira o neo-realismo, escrevendo a "António Vale" uma carta que nunca teve resposta.
Cartas de um expatriado, dividido o quotidiano entre o estudo da obra dos Jesuítas e a melhor técnica de lavar pratos com água quente e detergente líquido Lux.
Cartas incertas, mas sempre gratas, atenciosas no estilo e cuidadosas na forma, a pedir desculpa se a caneta com que eram escritas não desse boa caligrafia mas estava à experiência.
Cartas em que se entende quanto este homem pagou pelas polémicas em que se envolveu, a propósito do que escreveu sobre a Inquisição e temas que sabia malditos e quanta falta lhe fez o carinho o núcleo de uma família de que se exilou.
Através delas sente-se ser possível o mundo que nos surge hoje compendiado em livros, assiste-se ao nascer da ideia, ao retorcer-se de uma alma por ela, aos anseios do corpo pela vida.
Quanto a História da Literatura que escreveu a meias com Óscar Lopes, me pareceu, enfim, uma obra de intrínseca humanidade.
É um livro pequeno, magnífico, editado pela Gradiva. Li-o, antes de partir para estes dias de recolhimento, reconstruindo-me naquilo que é o fruto da incapacidade e da incerteza.
Levei dele comigo o espírito que é o que fica quando nos esquecemos do que lemos.
De resto, que é a vida, no seu errante jogo, mais do que ter sido vivida e não o modo como se viveu?