Aqui fica o texto do que li ante a Sociedade de Língua no passado dia 30 de Abril. Não sou especialista em Literatura, apenas um leitor.
1.
O tema nasce porque o leitor de português no King’s College, onde obtivera o grau académico de Master of Arts, Ruben Alfredo Andresen Leitão, perdeu, em 1951, o lugar, devido a pressões do Governo de Lisboa, na sequência do segundo volume que no ano transacto fizera editar, o das suas Páginas. Motivo directo: heterodoxia sintáctica.
Por detrás da conformidade do escrito com as regras linguísticas estavam também dois factores: o político, decorrente do conteúdo do relato e a intriga, rodeada esta numa penumbra sentimental que envolveria uma senhora, alegada denunciante, frustrada de amores pelo seu irmão José.
Destas duas últimas razões, a primeira faz sentido no contexto relativo da época: o escrito abunda em menções de substância crítica à Inglaterra, onde o autor desempenhava funções académicas e à própria realidade portuguesa, a primeira apta a criar dificuldades à política externa face à nossa mais velha aliada, a Loira Albion, a segunda, à “política do espírito” que reinava como ideologia securitária culural do Estado Novo. A segunda é a eterna fonte das acções humanas, a simbiose do ódio pelo não amor, o despeito.
A causa primeira, a causa eficiente como lhe chamaria Aristóteles, essa porém, é um insólito que ainda hoje ecoa e me me animou a revivê-la aqui.
O livro havia sido composto nas Oficinas Gráficas da Coimbra Editora, cidade onde o autor fizera estudos universitários, editado, no entanto, a expensas suas, e com venda reduzidíssima, facto que ainda hoje pertence ao domínio da petite histoire editorial. «Os meus livros raro chegam a atingir um grau medíocre de comunicação», diria mais tarde.
Nele compendiavam-se dispersos, apontamentos de viagens, de presença e de ausência, notas pessoais, o ego do escritor em acção, traduzindo o sentir em que muitos se poderiam rever no silêncio da leitura. Nada de extraordinário neste País de emigrantes e Nação de poetas.
O estilo era, porém, incomum, a tocar o revolucionário para a época, mesmo relevando as estonteantes piruetas estilísticas que os anos vinte haviam trazido ao regime político de Lisboa no domínio da Literatura, através dos modernistas que António Ferro convocara e, entre todos eles, como genial ímpar, José de Almada Negreiros, o autor da verrinosa Cena do Ódio e de toda uma escrita contorcionista apta a surpreender.
O autor tinha então 29 anos de idade e, como se exprimiria mais tarde, quase vinte anos volvidos, «ambicionava criar uma linguagem que libertasse a minha sensibilidade» e por isso mesmo «não podia usar a linguagem do Costa, porque o que eu tinha a dizer não era de modo nenhum o que o Costa dizia».
Verdade é que foi por causa do estilo que a matéria subiu à mão do contido e sóbrio Presidente do Conselho de Ministros, o qual redigiu, nas folhas de bloco em que se confiou para a História, notas de leitura que endereçou ao Ministro da Educação na altura, Fernando Pires de Lima.
Eis a primeira vez que o ditador teve o ensejo de exercer crítica literária, e fê-lo num aquém absolutamente humilhante da sua personalidade de estadista, perplexo e ofendido mesmo no seu conservadorismo atávico, ante o que lia.
Dois excertos:
«Lá fora o Juiz falava calmamente da natureza, dos pássaros, das colheitas e na generalidade aceitava o uivar constantes da multidão profundamente sexuada pelas áreas de La Bella. A rivalidade entre o Juiz e o escroque máximo – para a posse da prima-dona – atingiu uma troca de palavras baixas, feias, confidenciais – prostituídas rapidamente assimiladas pela careca bailarínica do Engenheiro C. do M.G. dos C. em particular».
«A mentirosa de Londres – a mulher de boca podre também me aldrabou. Alguns amigos – ao jantar – ouviram condescendentemente um bêbado que pelo facto de cheirar mal era o charme de Londres. A Mentirosa beijou-o num vislumbre sujo de mau hálito. Há poucos dias voltei a encontrá-la e tornou a mentir pela fama baixa que deita – em casa toma atitudes onézimas e, quando bem atestada pelo enfrasque do vinho ou das borras, só sabe falar verdade quando mente, prevenido encaixei algumas cujo sentido prático se desdobrava em sexo.»
Recorda-a, a essa ira salazarista, o irmão José Andresen Leitão, depois de ter feito uma privada investigação junto do Instituto de Alta Cultura, de que o controverso autor era bolseiro, e através de elementos que o Secretário do Ministro, António Miranda, para isso lhe facultou.
Em quatro páginas Salazar procedera a uma crítica «violenta, arrasante, doutrinal». Segundo o Secretário ministerial, o livro «tocou profundamente o seu edifício lógico, ordeiro e convencional».
Do manuscrito ficam estas frases a traduzir a visão do que da biografia e escrita do leitor em Londres ficara no espírito de retraída libido do Chefe do Governo: «pertence a uma boa família do Porto»; «há páginas completamente ininteligíveis e irredutíveis na análise das regras da gramática portuguesa recheadas de termos de invenção do Autor»; «explora-se o reles, o ordinário, o palavreado porco não só da língua literária e do falar corrente»; «as porcarias absurdas, palavrões juncam o livro»; «em certas passagens é chocarreiramente desabrido com os ingleses»; «de certa corrente modernista e isso é um caso para a censura e a polícia»; «o Autor deve pertencer a um tipo de pessoas que a polícia persegue»; «o Autor não pode representar Portugal nem ensinar português».
Enfim, era o atestado de mau comportamento moral e civil, barramento para a função pública, ao limite, perto quase, nas entrelinhas, da fronteira que enxotara do serviço público António Botto, demitido em Novembro de 1942 entre outras coisas por «não manter na repartição a devida compostura e aprumo, dirigindo galanteios e frases de sentido equívoco a um seu colega, denunciando tendências condenadas pela moral social» e «fazer versos e recitá-los durante as horas regulamentares do funcionamento da repartição, prejudicando assim não só o rendimento dos serviços mas a sua própria disciplina interna.»
Sucede que os ingleses reagiram mal a esta intervenção moralista literária do Chefe do Executivo português e o Reitor da Universidade de Londres fez sentir, por via diplomática mas de modo suficientemente trovejante, que se não deixavam o Governo trabalhista britânico imiscuir-se na Universidade, menos ainda ao iriam tolerar a um Governo estrangeiro.
Ante isto, e o demais que se deve ter seguido no sentido de isolar Salazar, este, a 25 de Julho de 1951 escreve um cartão a Pires de Lima, no qual consigna: «Só hoje me mandaram os seus cartões e papéis relativos ao leitorado em Londres. Devolvo estes. Não há objecção ao que se pretende visto que o maluco do homem tem habilidade e competência para o cargo».
Eis, pois, aquilo que me traz aqui a este jantar: o «maluco do homem», genial escritor e os malefícios da gramática portuguesa.
Se Londres resistiu a cedê-lo à polícia do gosto, Ruben Andresen Leitão, humilhado, abandonou o cargo. Regressou a Lisboa, prostrado, isolado, e sem meios. «Escrever foi lutar», como notaria Jacinto Baptista, em homenagem póstuma. E lutou, escrevendo.
De emprego em emprego, começando pela Lever, seria a Embaixada do Brasil que se lhe garantiria lugar certo entre 1954 a 1972, e Vitorino Nemésio quem lhe alcançaria, em 1962, o posto de responsável pelo Instituto de Cultura Brasileira na Faculdade de Letras de Lisboa. Por um ano, em 1953, ensinaria no Liceu D. João de Castro. Em 1959, devido aos seus estudos sobre D. Pedro V, marco interessante na biografia daquele magnífico monarca, é eleito sócio correspondente da Academia Portuguesa de História. Só mais tarde, porém, em 1972 quando, com a liberalização do regime ensaiada por Marcello Caetano, alcançaria o posto de administrador da Imprensa Nacional.
Com o 25 de Abril João de Freitas Branco fá-lo-ia nomear por Vasco Gonçalves Director-Geral dos Assuntos Culturais, mas Ruben, irrequieto, atordoante, não se coaduna com o cargo, menos ainda com os militares. The right man at the wrong place, at the wrong time.
«A asneira não é privilégio das direitas ou das esquerdas, é uma constante nacional», escreveu um dia. Resumia-se, assim, o seu infortúnio com a política da cultura. Restava a grandeza da Literatura, a língua portuguesa como a sua Pátria.
A ela regressava para aquilo que denominaria, em síntese conclusiva, a «explosão do absurdo», o «encontro do ser normal Ruben Andresen Leitão com o outro personagem», o escritor Ruben A., com quem jogaria a dualidade típica do seu signo astrológico, Gémeos.
Mais tarde, o risível antagonismo irrompe em diálogo com Ruben B., o reprovado escolar que treparia à fortuna, à “barriguinha”, ao Buick à porta e mais seis filhos. Era o vértice do triângulo existência/literatura/sociedade, no qual surgiria o furacão criador de si. [para ler o resto clicar aqui]