Há aquelas gentilezas dos que amam livros e o pressentem nos outros.
Ontem um amigo, o Emílio, a quem devolvi uma preciosidade sob a forma de livro que, confiante, me emprestara, à ideia de que me proporcionasse uma visita guiada à sua imensa biblioteca, acrescentou «e se eu não estiver ficas lá a trabalhar no que precisas para o teu livro, porque os folhetos estão em caixas».
Ontem ainda, outro amigo, daqueles que o são quando tão pouco os conhecemos para além de meia-dúzia de palavras, fez-me chegar pelo correio uma mão-cheia dos livros que edita sob a chancela da "Opera Omnia".
Venho falar no "Casas de Escritores no Alentejo", um dos que dedicou aos locais da escrita, as moradas do espírito e que veio entre tantos com que me presenteou.
Folheei-o ainda só com aquela devoção com que se tem nas mãos uma obra de arte.
E revi-me no desejo de que me acolham essas bibliotecas perdidas ao longo da vida, semeadas pelo acaso como sementes jogadas ao vento. E entre eles eu encontre um canto onde repouse, uma mesa onde escreva e faça as próprias refeições, indistinto aquilo de que um ser se alimenta. E depois, mansamente, alguém dê um destino digno a tudo isso, ou alfarrabista pobre, daqueles cuja banca é uma lona espalhada pelo chão, ou uma simples estante numa parede sozinha, leve tudo, mesmo o que teve dedicatória, até o desprezível e possamos, enfim, fazer alguém feliz.
Um dia cheguei a dizer que, estenderia a mão, pedindo por esmola os livros que não quisessem. Em cada livro , em cada um desses livros já inúteis me pressinto no nervoso folheá-los, a mão incerta.
Por mais que sejam perecíveis, papel em pó se transformem, eles são a pele de um corpo, asperamente sensível como a própria alma.
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Origem da foto: aqui