Terminados os trabalhos forçados, reconciliei-me esta noite com Vergílio Ferreira como contista porque, ao julgá-lo sobretudo romancista, não gostara do que lera no registo breve que é necessariamente o do conto. E surpreendi-me esta noite com o seu bom humor corrosivo e fina ironia, eu que o tinha por sizudo e carrancudo, azedo, tal como me habituara a vê-lo na intimidade da sua Conta Corrente, o diário de que li na íntegra as duas remordentes séries.
Tudo sucedeu porque li A Galinha, essa notável peça de faiança literária, carregada de momentos surpreendentes no modo de escrever. Logo «porque era uma galinha de barro» ser uma frase que surge ao leitor quando, ante o lido, ele se convencera de que a narrativa incidia sobre um bípede emplumado. E sobretudo porque de uma quezília de inimizade recalcada numa família que tudo ofende se espraia em ódio velho para toda uma aldeia, com saldos cada vez mais positivos - ironicamente as baixas aumentam o saldo - de mortos, feridos, moribundos a que se juntam os que, no intervalo, fenecem de morte natural, mais a guarda e a tropa e a amotinação permanente com contas antigas por ajustar.
Foram, pois, risos na noite, a deixar na vizinhança a ideia de que ensandeci. Lá fora o vento soprava, ele também «escabujando de raiva e de ameaça». E eu aqui, entre folhas e um cobertor que o tempo enregelou, rumo ao final do «escacar a cacaria» - eu, sim, que teria escrito «escaqueirar» porque há termos que nos chegam assim das raízes do berço - de tudo sobejando - num mundo que em pó se há-se tornar - pulverizado o galináceo em faiança a camartelo, a estampa da Santa Bárbara a protectora face às trovoadas.
A Galinha. Conhecia a de Clarice Lispector. Hoje veio outra «castanha nas asas, menos castanha para o pescoço e a crista e o bico tinham a cor de um bico e de uma crista».