Chegaram a Portugal pobres, os galegos. Aceitavam os trabalhos mais modestos, mais duros. Mas o seu espírito empreendedor porfiou. Hoje, muitos lugares na restauração, no comércio, na indústria até, têm a sua marca. Fernando Assis Pacheco, jornalista, soube dar-lhes voz, por ser um de entre eles.
O livro lê-se com um sorriso, embora nem tudo nele seja alegre; sucede que a pena do autor consegue captar no ar a alma daquele povo, resistente, carinhoso nos sentimentos e no vocabulário, em que avultam os diminutivos, gente que em tanto se identifica connosco, os portugueses.
O subtítulo da obra dá o mote àquilo de que nele se trata: Benito Prada é o «galego da Província de Ourense, que veio a Portugal ganhar a vida».
Do que li, há muitos anos, ficou-me na memória a frase com que inicia: «Quando o Padeiro Velho de Casdemundo teve a certeza de que Manolo Cabra lhe desfeiteara a irmã, em dois segundos decidiu tudo. Nessa mesma noite matou-o de emboscada, arrastou o cadáver para o palheiro e foi acender o forno com umas vides que comprara para as empanadas da festa em San Bartolomé». Cortada a cabeça do corpo, o Padeiro «chamuscou-o bem chamuscado», pelas duas da manhã «untou o Cabra de alto a baixo com o tempero, enfiando-lhe um espeto pelas nalgas. Às cinco estava assado».
Este arranque, trágico, violento, cómico na sua rudeza primitiva, marca o tom da escrita. E logo o remate, que estoira com um foguete de lágrimas e risos: «”Caramba”, disse o irmão do meio, que admirava todas as invenções do mais velho, “é à segoviana!”».
Escrita por quem foi jornalista, do extinto semanário “O Jornal”, a obra é um pequenino prodígio quanto ao modo de dizer, de observações acutilantes. É o Grego «que nascera para vender a pele do diabo se lhe dessem percentagem conveniente», é a filha do Manca perante a qual «Benito começou a fazer-se distraído das mãos, a tocar-lhe num ombro, depois num braço, quando a estreitou pela cintura com a desculpa de ver como ficava um saiote de lã (…)», o próprio animal de nome bíblico, «Noé, o mulo (…) um perpétuo sobressalto» e ele, Benito, «em menos de um fósforo estava (…) a tirar a minga dos calções e a mijar bem mijada a palha do almoço de Noé, que se encanitou com o ultraje desenhando um coice», enfim, tantas frases em que o leitor se detém para melhor as saborear.
Dir-se-á que o livro, como todos os romances e novelas tem uma história. Mas que importa ela quando é mais o modo de a contar que interessa? É essa a diferença entre a grande e a mínima Literatura. Hoje, como afinal, sempre, desde que pelo século dezanove a figura do romance ganhou vida, existem livros espessos em que o escritor vai pura e simplesmente contando, cenas, lugares, vidas e lembranças, amiúde com pormenor cinematográfico, fazendo o leitor ver através das letras o que passou a observar melhor quando surgiu o animatógrafo que deu em cinema: são estendais feitos para entreter, em que um sala é inventariada quase que de bibelot em bibelot, os amores infelizes relatados, começando-se pelo tempo em que aos amantes lhes nasceram os avós.
Nada disso aqui. As figuras são reais, mesmo na sua brutalidade, e o picante da sua linguagem picaresca é porque o leitor é transportado para o pequeno mundo onde tudo isso é possível. Que melhor exemplo que o padre Oyarbide que, virando-se para Filemón Prada, pai de Benito, que achava o ritual da igreja uma maçada, o admoesta, primeiro, com um «mas é assim, meu filho, e quem somos nós para mudar uma coisa que vem dos alçapões do tempo?» mas logo a seguir, piedoso e tolerante o absolve: «E também te desculpo a má criação de faltares à missa, porque mais vale não te ver enfastiado e a coçar as partes quando celebro Deus».
Voltarei e este autor assim como voltarei àqueles sobre os quais escrevi as duas crónicas anteriores, Vergílio Ferreira e Fernando Namora: é que decidi-me falar aqui de livros e cada um deles escreveu muitos livros. Dir-me-ão que são livros difíceis de encontrar e sei que é verdade. Mas eis o meu propósito: tornar a leitura procura, como quem sai pela manhã por entre matos e planuras em busca de perdizes, longa sendo a caminhada.
Fernando Santiago Mendes Assis Pacheco, que se definia como «portugalego», morreu em 1995. Neto materno de Santiago Doallo Álvarez, galego da aldeia de Melias, Ourense. Tanta falta faz.
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Esta é uma das crónicas que tenho vindo a publicar no semanário "Mundo Português", cujos leitores são essencialmente os portugueses emigrados. Porque ao contrário do que tantos pensam merecem melhor do que serem tidos por incultos e tratados com o desdém de quem, por ter ficado aqui, se julga mais.
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Esta é uma das crónicas que tenho vindo a publicar no semanário "Mundo Português", cujos leitores são essencialmente os portugueses emigrados. Porque ao contrário do que tantos pensam merecem melhor do que serem tidos por incultos e tratados com o desdém de quem, por ter ficado aqui, se julga mais.