Editou e foi editado. Graças a ele tantos escritores puderam sê-lo. Hoje quase o esquecemos. Militou pela sua fé religiosa. Fez da ficção forma de viver a vida. Com a finura do bom-humor, mãe da educação. Nasceu em 1927.
Também ele advogado, envolveu-se de tal modo na escrita que procurou, generosamente, não fosse a sua mas a de outros que tivesse voz. Criou para tanto uma editora, a Moraes, a quem tantos autores devem ter leitores, sobretudo os do “Círculo de Poesia”, deserdados que chegaram ao público através daquela colecção, produzida em “arte povera”, num papel que normalmente se diria afecto, no comércio, ao embrulho de víveres baratos, mas belíssimos no efeito estético e no símbolo que traduziam.
Gastou nisso quanto tinha e, já ultrapassado o limite da prudência, o que não tinha, comprometendo junto da banca, para obter crédito, o seu aval pessoal. Endividado, sem meios já para solver compromissos, teve de encerrar a editora. Numa das suas crónicas relata o pesaroso de uma senhora que quase o admoestava por ter fechado portas àquele seu projecto editorial e a quem teria retorquido, na forma de uma pergunta, sobre se a recalcitrante interlocutora tinha, vez alguma que possa, comprado qualquer livro na agora extinta Moraes. A resposta foi a que se adivinha, um nunca comprei, de facto. E assim se compreendia o porquê de não ter possível aguentar mais.
O seu envolvimento com a edição não se limitou aos livros. Graças ao seu esforço e aos meios que entusiasticamente mobilizou para tal propósito, ganharam luz do dia revistas como “O Tempo e o Modo” e a “Concilium”. Através delas, um pensamento crítico, socialmente empenhado, espiritualmente angustiado, encontrou expressão, numa cruzada de proselitismo religioso através do humanismo cristão. Resumindo o que foi esse caminho entre as pedras, João Bénard da Costa daria título a um pequeno opúsculo a que chamou “Nós, os vencidos do catolicismo”: viveram, de facto, entre uma Igreja oficial, apostólica romana e uma esquerda jacobina, irreligiosa quando não ateia, seguindo no domínio filosófico o personalismo cristão de um Jenn-Marie Domenach e de Emmanuel Mounier, as pegadas, afinal dos que eram o corpo redactorial da revista francesa “Esprit”. O Concílio Vaticano II era o seu guia, o pequeno espaço no Largo do Picadeiro, mesmo ao lado da famigerada PIDE, a sua tertúlia de moderada oposição.
Em 1968 Francisco da Conceição Espadinha, da Editorial Presença, abria-lhe as portas para os primeiros passos no domínio da ficção e da crónica ficcionada.
E é aqui que se situa o livro que escolhi para esta semana.
Curiosamente na vertente deste tipo de escrita Alçada Baptista tem um estilo bem diverso daquele que caracterizou outras obras suas, como as “Conversas com Marcelo Caetano” – que lhe valeu não pouca incompreensão da parte de uma certa esquerda política - ou a “Peregrinação Interior” onde lança as suas reflexões existenciais em torno do problema da transcendência e do sentido da vida. Aluno dos jesuítas, estudante em São Fiel, essa origem haveria de marcar-lhe todo o percurso, mesmo quando temperado com a jovialidade do seu modo social de ser.
No caso deste são crónicas, escorreitas, risonhas, que se lê com gosto e são impossíveis de resumir. Narrativas de memórias, próprias e alheias, coisas de ter ouvido dizer, apontamentos, tudo solto, mas em cada uma com um ponto discreto a deixar caminho para uma, como a “moral da história”, dos antigos contos infantis.
Classificando os escritores como os de memória e os de imaginação, colocava nestes os que não tinham vivido a vida e, por isso, se entroncava o entre os segundos. Viveu-a, e como confessou a Miguel Sousa Tavares, sem ter inimigos, «porque ter inimigos dá muito trabalho”, surpreendido com a “preguiça ostensiva” de uma África para si tão sedutora, terra onde não achou colonizadores sim emigrantes. E escreveu bem sabendo que «a literatura que me interessa está na área do prazer, não do saber e de maneira nenhuma do dever»; e sobretudo, não tendo pudor em partilhar uma conversa que manteve com um seu privilegiado leitor que, gostando muito dos seus livros, lhe introduziu ressalva ao gosto: «gosto, porém, o senhor escreve-os do lado dos ricos e eu leio-os do lado dos pobres».
Só um homem honrado o diz publicamente e é essa honradez que marcou o seu legado. Isso e dedicação aos outros. Num mundo de egoísmo galopante é exemplo e moral, antes de ser literatura.