Quanto menos tempo tenho para ler, mais livros compro. É uma lógica de razão inversa fundada na esperança de que um dia, ainda que longínquo, terei tempo para os ler e a certeza de que um dia, muito próximo, o livro que não tiver comprado agora terá sumido nas guilhotinas do esquecimento editorial. E tenho pena que seja assim a minha vida, diminuída no que valorizo.
Hoje comprei a colectânea de escritos que António Cândido Franco dedicou a Luiz Pacheco. Pacheco de quem compro tudo quanto encontro - e não tenho encontrado muito - e compro também quanto surge sobre Luiz Pacheco. Reencontrei outro dia, a propósito, as Cartas ao Léu, que julgava perdidas e cuja existência na minha biblioteca me veio à superfície da memória por via de uma visita - coração apertado com receio de a encontrar já ida - à resistente Livraria Uni Verso, em Setúbal, obra militante de João Raposo.
Animado de boa-vontade, achando que merecia - porque aí pelas quatro trabalhava na profissão, transviado de insónia - iniciei a leitura.
Pelas primeiras vinte folhas já tinha alcançado que a chave biográfica ia ser uma aproximação à sexualidade de Pacheco, para o que convocar o registo freudiano faria sentido. E não me enganei. Por mais críticas que mereça a análise do ilustre médico de Viena - uma delas é que o mundo, tal como o concebe a psicanálise, a caminhar sobre o sexo deve ser, além do mais, particularmente doloroso - é uma abordagem que abre janelas interessantes de reflexão, descontado o voyeurismo.
Cheguei, porém, à página vinte e nove. Já tinha sido informado que Pacheco fora sodomizado aos doze anos - e informado sobre o nome do autor do acto [o que acho de interesse duvidoso] - e fora às prostitutas uma vez na adolescência. Mas na dita página, em decrescendo, adita-se que foi aos quinze anos que beijou na boca pela primeira vez uma mulher [e de novo o nome e o local do nascimento desta osculada e uma vez mais a minha dúvida quanto ao interesse da individualização].
Até aí, enfim. E enfim também que «não chegou a consumar a relação por causa dum pormenor que lhe repugnou, o cheiro das axilas».
Agora, o que não tem "enfim" é que António Cândido Franco, ante o facto, acrescente, em lógica analítica: «É um ponto particular que revela a educação puritana e burguesa, cheia de preconceitos higiénicos, em que se formou o primeiro Luiz Pacheco» e, adite que isso «mostra ainda que o espaço dominante nesta época era a casa, com o seu conforto, os seus preconceitos de ordem e limpeza, os seus tabus, e não a rua, muito solta, que o jovem só por excepção, e no quadro das suas deambulações liceais, terá frequentado nestes primeiros lustros».
É que bem pelo contrário e eis a irritação que vim aqui vociferar: juntar Marx, quanto aos preconceitos burgueses, e Freud, quanto aos complexos oriundos do recalcamento, isto por causa de um cheiro a sovaco que murcha qualquer apetite, é querer teorizar onde não há teoria possível, apenas mau cheiro por falta de água e sabão.
Haja pachorra! E é pena porque sigo o que posso dos trabalhos de António Cândido Franco, porque algumas das ribeiras mentais por onde esbracejo confluem nos rios onde dá braçadas.
Vou continuar a ler, a bílis recomposta. Se Pacheco fosse vivo, permito-me supor que, no seu estilo de ácido sulfúrico, tinha corroído a análise, liquefazendo-a, se é que não enxovalhava o autor da mesma com o marmeleiro da sua incerta ira.
É talvez isso, a fúria argumentativa, que, descontando tudo, a vinhaça, o deboche e o calote, me atraíram sempre na sua obra. Isso, o altíssimo conhecimento da vida literária portuguesa, e um acto de coragem cívica em relação ao mecenas Manuel Vinhas, quando este, que deu de comer a muito "intelectual", se viu por quantos desprezado e ignorado quando se exilou no Brasil após o 25 de Abril. E, por aqui me fico, que isso sim fede como latrina e daria pano para mangas.