Encontrei o livro por acaso. E de súbito nele tudo se tornou familiar. Desde logo a primeira referência a Luís Pedo Moitinho de Almeida, filho do proprietário de uma das casas comerciais onde Pessoa exerceu a sua profissão burocrática e que sobre ele nos deixou um livro e outros apontamentos diversos, recordações de um jovem atemorizado entre a genialidade que pressentia.
Depois, a referência ao local de nascimento do autor, Celorico de Basto. E logo um telefonema, a um meu Amigo, a quem li, o texto que assinalava uma tal origem, abriu a oportunidade de uma próxima visita me permitir ver, passando ao largo que seja, pela Casa de Melhorado, a de sua família.
O livro é uma digressão à tertúlia do Café Montanha, que Fernando Pessoa frequentava, extinto porque selvaticamente demolido e talvez, por isso, na superficial imagem do poeta, tudo se concentre como se, como local de companhia, só existisse o Martinho da Arcada, ao Terreiro do Paço.
Mas há mais: é a convivência próxima tornada narrativa, polvilhada de factos pequenos, é certo, mas igualmente interessantes porque mesmo a grandeza tem os seus recônditos íntimos de minudências e insólitos
Há, seguramente, um público ávido de voyeurismo, para quem as pequenas histórias se transmutam na História. Esses encontrarão aqui migalhas com que festejem o banquete da coscuvilhice. E talvez surpreendam Pessoa a não usar outros lápis do que «bocadinhos de lápis, aparados de um e de outro lado», ou no dichote a Pedro Theotónio Pereira, que amplamente detestava, enaltecendo da criatura o que lhe parecia nele de mais notável, o ter «os pés grandes». Ou ainda que, num passeio à Tapada da Ajuda, em carro eléctrico descoberto, Pessoa, entre cedros e abetos, tenha preferido que lhe mostrassem «tamarindo e um grão de pólen e não tarda um segundo que não pretenda que se agarre antes uma abelha».
Mas o que a obra me trouxe foram facetas interessantes, talvez porque as menos acentuadas por tantos que escreveram sobre o autor da Mensagem, que, já agora um pormenor pícaresco, na primeira prova tipográfica vinha o título escrito como Massagem...
Uma delas o da acção política daquele que, no imaginário colectivo, aparece envolto no nevoeiro do isolamento e da marginalidade. São várias as referências à sua acção no Núcleo de Acção Nacional, a mais conhecida fixação em Sidónio Pais, o Presidente-Rei. [quem quiser um pouco mais, pode ler aqui e aqui]. Grupo «meio fantasma» já se lhe chamou, de reduzida intervenção prática, voltado a uma ideia de uma monarquia «científica», assim ela nos é aqui resumida como ideia, fora dos ideais do Integralismo Lusitano, a cujas hostes o autor declara pertencer. Tudo temperado pelo desprezo a Afonso Costa e, afinal, àquilo em que a República se transformara.
Outra, a da densidade da profunda amizade a Mário de Sá Carneiro e o tremendo momento, que ali se confidencia, do instante, em que, ante um gato agonizante, cena com que tropeçara numa das suas solitárias deambulações, porque envenenando com estricnina, em volteando em longa agonia, ante os seus atónitos olhos, visão trágica e premonitória, a cabeça do animal aumenta de volume «e era a cabeça redonda do Sá Carneiro, eram as suas órbitas, as suas bochechas e um olhar triste e amargurado de despedida». Sá Carneiro suicidar-se-ia, em Paris, onde estudaria Direito, na Sorbonne, precisamente pela mesma horrível forma, morte dolorosa.
Francisco de Paula Peixoto da Silva Bourbon [1908-1992] divulgou as crónicas que o livro agora compila no jornal Ecos de Estremoz, entre 1972 e 1973. Outras, sob o mesmo tema, publicaria nos jornais Cidade de Tomar, Consciência Nacional, Notícias de Guimarães, O Comércio de Gaia.
Sobre o livro, com cujo autor privou, Pedro Teixeira da Motta escreveria no seu blog [ver aqui]: «Francisco Peixoto Bourbon cultivava muito as amizades, era sinceramente um ser bom e generoso e foi ele mesmo que me introduziu a outros amigos de Fernando Pessoa, tais como Moutinho de Almeida e o Manuel Menezes de Vasconcelos, e transmite muito bem nas suas evocações o calor humano que circulava entre eles, realçando bastante a falta do meio condigno do génio de Fernando Pessoa, embora a tertúlia do Montanha fosse quase um refúgio de consagração e onde se podia dialogar com franca troca de ideias, como o jovem estudante de agronomia logo experimentou, tornando-se como que o benjamim acalentado da tertúlia, da qual nomeia como participantes o eng. Rogério Caldeira Santos (seria o maior admirador de Pessoa e posteriormente tentou infrutuosamente transformar o café Montanha num museu Fernando Pessoa), o dr. Manuel de Menezes Vasconcelos (um dos mais íntimos), o Marquês de Penafiel, Da Cunha Dias, o Joaquim Palhares, Victoriano Braga, o dr. Pedro Moreira, o Mário Saa, o Dr. Carlos Lobo de Oliveira, o eng. Pulido Garcia, o Victoriano Braga, o Gualdino Gomes, o capitão Gastão de Melo de Matos, e umas poucas vezes o António Botto e o Almada Negreiros.»
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Eis o apontamento singelo. As palavras têm temperatura. Estas, fruto de um Domingo que finda, teimosamente ainda frio, terminada a leitura, feita às prestações, são mornas.