Hoje é o Dia Mundial do Livro. E como não me são indiferentes os livros.
Vicissitudes da vida fizeram com que extensas bibliotecas ficassem por lugares por onde se repartiu a minha existência, desde Malanje onde nasci, imensos mais em livrarias onde os vi sem ter por vezes meios para os comprar, outras por ter deixado para depois ir comprá-los, ou não me ter apercebido de que teria sido importante aproveitar a ocasião que se perfilava diante dos olhos, ao alcance do desejo e das possibilidades.
Estendo estantes por onde posso, por esta casa, pelo escritório e por um outro escritório que teimosamente mantenho na cidade do Porto. E andam pelo chão, em montículos que juro serem provisórios. Quando posso, arrumo-os por ordem, os de ficção eslava para que se não confundam com os que juntei sobre estudos literários ou de angeologia, incluindo os anjos caídos, o Vergílio Ferreira agora todo ordenado por datas, o Alesteir Crowley incompleto e a esmo, ainda ao lado, nem sei porquê do Amadeu Souza-Cardoso.
Sobre tantos temas tenho livros, alguns temas descobri-os ao ter descoberto um livro sobre isso. E depois há a incógnita, não por ter comprado um dicionário de esperanto mas sim um outro sobre tibetano, língua que não me imagino sequer a balbuciar. Um dia dei comigo a hesitar sobre não deveria adquirir, na ida Bucholz quando ainda era o que foi, a Summa Theologica do São Tomás de Aquino, mas comprei, um a um, todos da Enciclopédia Larousse, e os quarenta e cinco volumes da Obra Completa do Lénine, estes que ainda guardo, aqueles que alguém guardou para si. E tenho-a, porque confiada, a obra jurídica completa do Lobão, incluindo os Comentários a Pascoal e o próprio Pascoal Mello Freire, ainda em Latim.
Fui leitor e sou leitor e nunca o fazer contas à vida e aos anos que posso ainda viver me impediu de querer mais livros, sempre mais livros, mesmo que razoavelmente fiquem muitos por abrir ou sequer folhear: há nisto uma raivosa esperança em querer ter mais alma do que a fatalidade do precário corpo. São amigos, companheiros, a sua presença aquece o espírito, há sempre um que faz sentido na alegria e na dor.
Fui editor, duas vezes, a primeira dos meus próprios livros, a segunda de livros alheios. Na primeira veste, dei-me voz sem prejudicar quem seja, na segunda arruinei um capital meu que não quis poupar e que se esgotou quando os prejuízos somados e a insolvência da distribuidora me devolveram razão ao sonho que se tornava pesadelo. De qualquer modo, por estúpido que seja, não me arrependo: isto é a teimosia dos que acreditam no sucesso que se encontra no desastre. Mesmo com o mercado adverso, mesmo com diminutos leitores, mesmo oferecendo livros, carregando com eles às costas e somando sobras, valeu a pena. Aprendi tudo do ofício, desde o primeiro momento em que o livro é uma ideia até à final em que é um pacote a levar para a sessão de apresentação e regressar, tristonho, porque ninguém o quis.
Não diabolizo o mundo digital , porque sou dos que também lêem num écran, em todos eles. Ler não importa onde, não importa que tipo de escrita, manuscrita ou tipográfica, ler, que seja jornal já requentado, ou versículos da Bíblia num noite insone, encontrada numa gaveta de hotel.
Hoje é o Dia do Livro, como aliás cada dia passou a ser o dia de não importa o quê.
Fui ontem buscar ali à Livraria do Centro de Arte Moderna mais um livro do Hermann Hesse, chegou hoje, vindo da Amazon um outro sobre César Ritz e o chef August Escoffier. Há pouco arrumei na estante, por estar nesta num lugar errado, o Vidas Secas do Graciliano Ramos.
A imagem deste post é de um livro emprestado. Terei de o devolver com mágoa. Irene Lisboa, a quem dediquei um blog, e da qual creio ter conseguido reunir a obra completa, escreveu em 1944 o Inquérito ao Livro em Portugal. Publicou-o a Seara Nova, de que foi dilecta colaborada. Lê-lo é concluir que os problemas de hoje são os de sempre: poucos leitores, curta passagem dos livros pelas livrarias, excesso de produção, problemas comerciais de distribuição.
Comove ir ao índice e ver o que sucedeu aos livreiros que ela ouviu para o que escreveu, tudo falido, tudo ido: Parceria A. M. Pereira, Livraria Sá da Costa, Editorial Gleba, Livraria Luso-Espanhola, Livraria Latina, Arménio Amado, Coimbra Editora, Livraria Cunha, Casa Livros de Portugal.
Neste mundo de mortos, uma coisa vive: o livro e o amor dos leitores pelo que eles são.