sábado, 29 de junho de 2019

A contemplação compreensiva do outro

Não era definitivamente possível continuar sem ler. Tinha perdido a apresentação do livro na Biblioteca da Rainha no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Mas tinha-me chegado ontem, encomendado à livraria aqui perto. E hoje, recuperado de semanas de exaustão, sonos trocados, trabalho em atraso, a viver sempre em função das vagas de urgências profissionais, decidi-me, dando-me a mim mesmo liberdade. 
E acabo de o ler. Poucas horas bastaram. E aqui estou a partilhar uma primeira impressão.
O autor tinha vinte e cinco anos quando foi colocado, a 6 de Janeiro de 1946, no seu posto em Tóquio junto do Alto Comando Aliado. O País estava ocupado pelas forças norte-americanas, comandadas pelo General MacArthur. O 124º Imperador do Japão Hirohito renunciara nesse dia à sua condição divina, abrindo a porta para uma Constituição que inauguraria um sistema democrático para a governação. A cidade, arrasada pelos bombardeamentos estava em escombros, a vida quotidiana pautava-se por todas as misérias possíveis.
A obra é o diário da estadia do jovem diplomata no local onde permaneceria até 1950 e no qual, ao findar o ano, conheceria a que seria sua mulher, Vera Machado Duarte Wang, recentemente falecida.
Como anotou o prefaciador, Embaixador Freitas Ferraz, nesse diário que cobre todo o ano de 1946, não há qualquer alusão, indiscreta seria, à natureza das funções ou aos episódios oficiais de sua incumbência. Há, sim, logo a abrir, a verdade das condições de extrema pobreza que encontrou para o povo cujo sentimento tão bem conseguiu captar e para si próprio, instalados em precárias condições, e o esboço da reconstrução pelo surgir tumultuoso de um novo mundo, alheio ao que era o secular modo rígido de ser da alma japonesa. Mau grado o cargo, não foi poupado a extrema penúria e sofreu-a sem desanimar, tornando sofrimento em Literatura.
Um livro assim pode ser visto sob diversos ângulos, desde logo o da reconstituição do caos que se vivia então ante um sistema político que era total novidade para a realidade nipónica, a desorientação de uma Nação que fora levada para uma guerra de que saíra destroçada, o comportamento festivo da força ocupante, a si mesmo se dotando de conforto e meios de distância que são prémio ao vencedor. A resumir tudo numa expressão que o autor não refere, o Japão passaria da Idade Média para o capitalismo avançado sem Revolução Industrial, de um sistema político teocrático para uma democracia imposta sem Revolução Social, mas pela mão militar da potência ocupante. Franco Nogueira chegou do momento dessa mutação história fenomenal.
Pessoalmente, mais distante hoje desses temas, cívicos que sejam e de óbvio realce historiográfico, ficaram-me desta edição belíssima tirada pela Tinta da China, duas vertentes,  talvez menos vulgares e, por isso, menos expectáveis; uma tirada ao mundo terreno, outra trazida do mundo dos Céus.
Num país em que, no dizer de uma das personagens do livro, «tudo sucede e nada acontece», a primeira é a da evidência da infinita paciência ante a privação, as dificuldades, a improbabilidade. São, direi, momentos de refinado humor, trazidos por alguns episódios, daqueles em que a História maiúscula se revela pelas minúsculas pequenas histórias, como quando o automóvel, enfim conseguido, já ao findar do ano e pago o aluguer com a ração de combustível que lhe estava destinada, súbito avariou e o motorista, incapaz de se entender com a máquina, se conforma e tenta gerar conformismo, com a ideia de que esperando sem nada fazer, talvez amanhã funcione; ou quando, logo nos primeiros dias, ao pretender uma chamada telefónica, é respondido com a serena amabilidade da recepcionista do hotel, de que esperasse «um minuto por favor» o que veio a ser afinal traduzido pelo encarregado em termos enfim compreensíveis, pois não só o telefone do hotel estava avariado como também o do local em Tóquio para onde pretendia a ligação. Era tudo uma questão de esperar um minuto e todos os uns minutos que se seguissem.
Espírito curioso, Alberto Gorjão Franco Nogueira viaja. E viaja indiferente às condições de total desconforto, em comboios em ruínas, apinhados de gente e mercadorias, de pé, sujeito ao frio glacial e à chuva. E de tudo nos dá, numa escrita de finíssimo recorte literário, um retrato em que o horror se torna belo, a paucidade se transmuta em imensidão. 
É precisamente nessa contemplação compreensiva do outro, que se abeira da espiritualidade japonesa e a descreve em termos magistrais, em Kamakura, ante a estátua gigantesca do Buda, de que se aproxima sem pressa, como se a querer pressentir, interiorizando-o, o ensinamento que o xintoísmo traduz e neste [permitam-me, longo] excerto tão bem sintetiza: 

«A imagem colossal esmaga o ermo e impõe a sua presença. Não nos deixa dúvidas sobre a paz no Céu e estimula a paz na Terra; emana tranquilidade confiante; e propaga, em redor, por montanhas e por oceanos, a sabedoria da suprema humildade derivada do supremo conhecimento. Não exige de nós sofrimento nem preces; não promete a vida eterna; mas também não se oferece como Redentor da humanidade pecadora. Proclama a inutilidade das grandezas; sonhos de glória ou amor, ambições de fortuna, ânsia de poder, são apenas ilusões dos sentidos desencaminhados. A existência terrena é um mal que só a nossa ignorância torna possível. O caminho a seguir é o da ignorância individual, da iluminação íntima; e só por ele se alcança o benefício da graça búdica, fora da qual nada tem merecimento. Para além de Buda não há realidade: ele congrega o absoluto: é inteligência, moral e ciência são abstracções sem sentido. Além de Buda só há transmutações e transubstanciações. Mas o Grande Príncipe não é um Deus, criador de homens e de mundos. É um exemplo: aponta a estrada da grande aventura; e ensina a vereda prática que conduz à negação. Ser Infinito e Ente Único, convida-nos à crença na felicidade pela aniquilação nirvânica».

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Velando o Deus interior


Capa de «Pensamentos para mim próprio», de Marco Aurélio

Levei semanas com ele debaixo do braço, numa perpétua leitura de intervalos.

Após a última página, porém, o livro não regressou à estante. Por aqui tem permanecido, num ou noutro recanto da casa, enquanto me empenho em abri-lo e fechá-lo como a boca de um peixe. Revejo passagens, recordo anarquicamente, numa ânsia desordenada de reler.

Trata-se de um volume pequeno, publicado em 1978 pela Editorial Estampa, o longo título a contrastar com a brevidade da mais vulgarizada fórmula inglesa «Meditations».

Do título original, em grego, não nos chegaram certezas. Não será descabido assumir que nunca o teve, tanto mais que, por quanto se sabe, se tratava de um diário privado, jamais destinado a ser lido por outros olhos que não os do seu autor.

Porém, num desses desvios que tanto se discutem quanto apreciam na história da literatura (à mente logo assoma o dilema de Max Brod entre destruir e divulgar a obra de Kafka), os pensamentos de Marco Aurélio esquivaram-se ao silêncio dos séculos e formam hoje parte do grande diálogo universal.

Sob os meus olhos cansados, as palavras confiadas pelo grande imperador ao recato de um escrito íntimo recortam-se de circunstâncias e lugares de nascimento para me chegarem impolutas. Íntegras apesar de o quotidiano em que são lidas poder bem ser outro planeta face àquele em que foram escritas.

Vivemos numa época em que o tempo se encolhe ao mesmo ritmo frenético a que se desmultiplicam possibilidades e o sentido do relevante e do justo recua inexoravelmente para a sombra.

É para este tempo do muito, e paradoxalmente do escasso, que as palavras de Marco Aurélio se revelam um guião valioso.

Recordam-nos que num mundo em constante devir, onde nem ofensa nem glória serão, por fim, mais que poeira dispersa, a verdadeira tragédia da existência não é o seu fim, mas uma pessoa consentir na desonra da sua alma.

E dizem-nos que essa desonra não pode vir de fora. Que não são a crítica ou má conduta alheia, o infortúnio, ou sequer a morte, a derrotar o espírito humano, e sim o seu próprio empenho em se rebelar contra o que é, ou o desistir de devotar-se, em ideias, palavras e acções, à conduta recta, justa, corajosa, comedida e útil ao bem comum.

Tanto quanto o mundo ao nosso redor insiste em que esbanjemos atenção, Marco Aurélio impele-nos a olhar para dentro. A fundar aí a razão de ser de qualquer movimento.

«Em resumo, tudo o que respeita ao corpo, um rio; e a alma, sonho e fumo; a vida, uma guerra, um exílio no estrangeiro; a fama póstuma, o esquecimento. Que pode então guiar-nos? Única e exclusivamente a filosofia. E ela consiste em velar o Deus interior, para que permaneça isento de ultraje e prejuízo, que triunfe dos prazeres e sofrimentos, que nada faça impensadamente, que se abstenha de mentira e de dissimulação, não tenha necessidade que os outros façam ou deixem de fazer isto ou aquilo; por outro lado, que aceite o que lhe acontece e constitui a sua parte, como vindo dessa origem remota donde ele próprio veio; sobretudo que aguarde a morte de alma serena, não vendo nela mais que a dissolução dos elementos de que é composto cada ser vivo».

O que mais toca em Marco Aurélio não é tanto a autoridade da sua exposição, quanto o exemplo de uma mente consciente das contradições de estar vivo e ainda assim determinada a encontrar constância em si mesma.

A verdadeira dimensão do que escreveu só se revela quando nos damos conta de que o que diz não constitui ensinamento para o futuro, mas advertência para si mesmo. Que, com toda a probabilidade, as suas palavras não brotam de um lugar de superioridade, mas de momentos de falha, de uma consciência que se examina continuamente e exige de si fazer melhor amanhã.

Que um célebre imperador romano do segundo século depois de Cristo possa ainda falar, como mestre e modelo, a uma anónima leitora portuguesa do séc. XXI será marca de um espírito extraordinário.

Será, também, prova da igualdade elementar que nos acolhe a todos sob um mesmo tecto existencial, não obstante a diversidade que nos compele a apartarmos pessoas em função de ocorrências fortuitas, como os pontos do mapa e da linha cronológica em que vivem.