Luto por ler, a horas desencontradas, surgidas pela noite, forçando-me a tornar em descanso uma pausa nos deveres que, almas penadas, não param.
E li assim, folha a folha, até mesmo às últimas folhas que a teimosia me fez passar para a manhã de hoje e bem poderia ter terminado ainda ontem, mas há aquele resíduo de liberdade que é deixar para amanhã o que bem poderias fazer hoje e assim fiz.
E que livro extraordinário e sobretudo que descoberta surpreendente. Digo isto, bem sabendo que os meus espantos são a admissão pública da minha ignorância, pois Tomaz de Figueiredo tem Obra Completa editada pela Imprensa Nacional, graças à iniciativa daquela outra alma sensível que é António Braz Teixeira. Mas que querem se eu não o conhecia, e só cheguei a ele porque no livro Estátua de Sal de Maria Ondina Braga li uma sua carinhosa apresentação da obra, escrita como a negar-se a apresentar mas tão cheio de júbilo e admiração pela escritora sua conterrânea? E se, estando a trabalhar sobre o Jornal de Crítica Literária para o que depois direi, não desanimei quando Alberto Franco Nogueira (para muitos ainda) seu inesperado autor faz um delicado reparo a uma sua segunda obra, o Nó Cego, vendo nela seriedade mas frieza?
Agarrei-me, assim, a A Toca do Lobo, ademais numa encadernação maravilhosa que alguém com mimo mandou envolver a obra, em macia pelica marron, com letras douradas, incluindo as da menção «prémio Eça de Queiroz (romance)/Concurso de Prémios Literários (1948) do Secretariado Nacional da Informação», menção que por certo condenaria o livro para a fogueira em que os inquisidores contemporâneos, polícias do gosto e serviçais do politicamente correcto, logo o condenariam, visto o ano da edição (1947) e o prémio governamental que recebeu.
Mas eu estou na idade do querer lá saber e já nem luta travo com inutilidades, usando antes o tempo de guerra para ler em paz o que os outros repudiam, e ler até mesmo o que esses tais proprietários do bem e do bom idolatram - sem suporem sequer e nem teriam, insignificante eu - ser tão quisto por seres como o meu ente leitor.
Voltando ao livro e à descoberta.
Há nele, em todo o seu esplendor, a notável língua portuguesa, a mesma de que cada vez há mais gente a usar menos vocábulos e frases, económicos com os termos porque curtos com as ideias, mas que aqui surge a trazer-me memórias do que ouvia em casa e assim rememoro, palavras que, sem se topar o significado, quase sugerem, logo pela fonética, ao que vêm: o «não pagar a pena estar com pequices», os «codiciosos padrecas», os tecidos «enfeitados de borbetos», a boca «mal desfranzida», o «pontapé [que] foi muito bem assopado», o «como quem arrancasse os pesos e estorcagasse o pêndulo dum relógio», a «cambulhada de filhos» e tanto mais.
E há também aquelas formas de dizer que, de originais, acrescentam ao dito, o feito: «lia-a, lia-a, saltando linhas, atrapalhando páginas», «ia ficando mais vermelho que os corais de um peru, quase lhe saltavam as cordoveias do pescoço», a tia Francisca «aquela alma enérgica e grande demais para corpo tão sequinho, quase só feito de roupa», o «desarreigar da memória», o «jovem levita, fulo, depois de uns palanfrórios casuísticos, dumas alicantinas que deixaram a tia Francisca de gesso. /Pois sim! Levou para tabaco)» e uma torrente de expressões em luxúria que é deleite.
Mas não é apenas prodigalidade vocabular e estilística de que a obra é feita, sim, e muito, aquilo a que alguns detractores de minguado verbo, invejosos, apodaram de "regionalismos", a rebaixar, tentando alçar-se em cima da escória do palavrão soez porquanto inútil, os do que Vergílio Ferreira, bilioso, na sua Conta Corrente chamava [e com vossa licença, eis tal qual, volta Gil Vicente!] «da Literatura de caralhadas».
Escrito sobre casa em aldeia, surpreendendo dos rurais o verbo, A Toca trá-los no discurso directo e retrata-os com as cores do seu modo de ser e falar.
Há no sedimento desta escrita crítica social aberta, à justiça duvidosa e ao clero prevaricador, de carinho pelos dos baixios da vida, nisso incluindo as senhorias morgadas em miséria envergonhada, mendigos sem ousarem estender a mão, e sobretudo aquela fome de vida e de amor, aquela ânsia de tempo e o desejo de paz no silêncio da criação.
Livro de linhagem há nele patente desprezo pelo estado vil a que chegaram os que pela origem tinham deveres e se afundaram pelo gozo das liberdades até ao rebaixamento: «Já reparaste na vergonha que é, o geral disso a que ainda se chama fidalguia portuguesa? A pedir vassourada, meu filho, a pedir vassourada! Já quase sem distinguir entre uma espada e um chanfalho de polícia...Não to digo por vaidade, pois não me julgo de melhor sangue do que tantos e tantos, mas, em muitos desse tantos, o bom sangue é o que já secou... Misturado com muita borra...Uns porcos!).»
Livro de desesperada solidão, há, apanhada em instantâneo fulgurante «a multidão dos felizes, os de tão acanhada alma, que se confessavam e eram, felizes!».
Leio, li, pudesse achar tempo, fabricando-o, leria de novo. Descobri outro livro seu, desta feita com prefácio risonho - e como não poderia sê-lo - de Onésimo Teotónio Pereira. E vou comprar todos os que a Imprensa editou, sofrendo-lhe o incompreensível preço usurário, vergonha porque de uma entidade que deveria promover a cultura tornando o ler barato e assim acessível.
Fico por aqui. Voltando aonde comecei direi, citando o excerto final do que escreveu para Maria Ondina: «Apresentar este livro? Um livro destes?! Apresentá-lo só o apresentaria se cada leitor aqui o chamasse e lho lesse».
Tal e qual.
Venham, pois, leiam por mim e o que eu não li.