sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

A pedra na calçada que se agita

Foi este o texto que ontem, dia 30 de Janeiro de 2020, li na Universidade Lusíada, respeitante à personalidade literária do Embaixador Franco Nogueira, faceta menos conhecida da sua vida e concretamente em face deste seu livro o Jornal de Crítica Literária.


Seja-me permitida esta inesperada incursão. Apresento-me: sou apenas um leitor apaixonado pelo que lê, leitor que procura livros nos alfarrabistas, nos que os vendem em improvisadas bancas na rua, os que os expõe no chão, livros de bibliotecas desfeitas pelo desinteresse, pela necessidade, pelas leis sucessórias, livros particulares de quem um dia os sentiu como seres a mais, por não ter espaço para eles ou não querer ter espaço em que os conserve, livros vendidos por miséria, até por ganância de colecionador, leitor que teme o futuro dos livros que retirou ao abandono. 

Sou apenas um leitor que descobriu num Sábado, na Rua de Anchieta, um livro em que o título não correspondia com a ideia que fazia então do seu autor. O livro chamava-se Jornal de Crítica Literária, o autor Franco Nogueira, editado em 1954. 

Alberto Marciano Gorjão Franco Nogueira, diplomata, ministro dos Negócios Estrangeiros, ensaísta, autor de uma inevitável porque notável biografia de António de Oliveira Salazar, que serviu como ministro. Mas Franco Nogueira crítico literário? 

Sim, Franco Nogueira foi crítico literário, num tempo em que a crítica literária quase inexistia em Portugal; mas se é notória a sua paixão pelo que escrevia, e se era fácil prever uma continuação desse seu envolvimento com as Letras, a carreira diplomática, que abraçara em Outubro de 1941, veio a criar circunstâncias que o fizeram perder-se dessa sua natureza. Foi então colocado em Londres, cidade onde viveria de novo, em exílio, saído das «prisões de Abril», e onde escreveria os seus volumes biográficos sobre Oliveira Salazar. 

Convidado a 18 de Janeiro de 1955 para integrar o júri dos “Prémios Literários”, do Secretariado Nacional de Informação e Turismo, concretamente do júri do prémio “Ramalho Ortigão” para as obras ensaísticas, declinou com amabilidade, pois uma colocação no estrangeiro iria impedi-lo de aceitar o convite que, de outro modo, «gostosamente» aceitaria. Nesse mesmo ano publicaria, já em Londres, na Adam International Review, prestigiada revista literária britânica, um ensaio sobre seis poetas maiores, tradução de um dos capítulos do Jornal. 

Li o livro. Devo à Aida Franco Nogueira, sua filha, uma gentileza que nunca poderei retribuir, a cedência da parte do espólio de seu Pai respeitante à sua personalidade literária. 

É precisamente isso que trago aqui: as notas de leitor, somadas agora à correspondência particular, precisamente por causa deste mesmo livro. 

O Jornal de Crítica Literária, publicado, como disse, em 1954, condensa escritos que o seu autor foi dispersando «com largas intermitências», nos diz, entre 1943 e 1953. 

Logo esta cronologia traz uma primeira interessante constatação: nesses anos, Franco Nogueira já detinha na estrutura do Ministério, cargo de responsabilidade o que logo faz adivinhar o que foi, aliás, realidade: esta sua faceta de envolvimento com as letras não foi olhada como conatural à pose da função pelo que, tendo chegado à ousadia de saírem tais escritos em letra de imprensa, editados pela Portugália de Agostinho Fernandes – esse generoso mecenas a quem tanto se deve e pouco se agradeceu – a obra é a demonstração ostensiva de uma personalidade forte de quem, tendo-lhes dado vida, se recusou a confiná-los à gaveta. 

Alongada por um decénio, a análise crítica de Franco Nogueira surpreende as letras portuguesas num momento em que convergem duas circunstâncias. 

A primeira, no plano da vida cultural, a da quase total inexistência de críticos literários dignos desse nome, salvo excepções de que, ao longo do livro, dá reiteradamente conta: João Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro, Jaime Brasil, Álvaro Salema, António Ramos Rosa, Mário Dionísio e uns quantos poucos mais. 

A segunda, resulta de esse corte temporal, congruente com algum critério que o autor não revela, talvez de sua opção pessoal, encontrar a literatura portuguesa num período intermédio em que se assiste ao que Óscar Lopes e António José Saraiva chamam a «revalorização do realismo», literatura, afinal, de crítica social conjugada com [e deles cito] «um sentimento de confiança no processo histórico-social, confiança depositada sobre a própria antítese progressista que surge de dadas condições inumanas», em suma, digo, e para usar palavras que não poderiam ser expressas assim de modo tão claro ante o regime político então reinante, vigente a Censura prévia à imprensa e o controlo editorial aos livros, uma literatura de crítica ao capitalismo e empenhamento no socialismo de Estado como forma de realização do Homem e bandeira sobre a qual os escritores ditos «progressistas» deveriam marchar. 

É nesta dupla vertente contextual que tudo se torna interessante em torno deste livro. 

Por um lado, Franco Nogueira justifica-se como crítico literário e define o que entende serem os critérios de uma tal missão, antecipando o que será a razão pela qual afere os livros sobre os quais faz incidir a sua análise. 

Nas suas palavras, do que se trata, para o crítico, é de estar em processo de contínua renovação, ser homem do seu tempo, nessa tarefa que no essencial é «a recondução da arte à vida». 

Por outro, é ilustrativo que a observação que o livro traduz surpreenda autores em fase ainda de amadurecimento e que viriam a revelar-se essenciais, outros ainda nos primórdios promissores, como Vergílio Ferreira, mais aqueles que o tempo veio a tornar irrelevantes pela decadência da obra, perda de leitores ou desajustamento com os interesses voláteis da actualidade. 

Se vale um princípio segundo o qual não há santos sem Igreja, talvez assim se compreenda que José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira, Alves Redol - valham ou não as suas obras literárias, e há desigualdades de valia - tenham, relevando o ambiente post-Abril que ainda hoje perdura, encontrado perdurabilidade, mas já não quanto escreveram Domingos Monteiro, José Luís Cajão, Cunha e Sá, António de Navarro e Afonso Duarte. 

Afonso Duarte que já na altura estava «tão injustamente esquecido», como em carta de 3 de Agosto de 1954, João José Cochofel lhe faz notar, agradecendo que o tenha restituído à memória. 

Para chegar a este ponto de fina percepção da Literatura do seu tempo, Alberto Franco Nogueira faz apelo a uma escrita límpida e objectiva, e a uma cultura vasta, fruto de leituras que lhe permitiram chegar ao pormenor da narrativa, surpreender a estilística da redacção, captar a arquitectura do texto mas, como se isso não bastasse, convocar para as suas conclusões, a leitura de obras pretéritas de cada autor e registos comparados da literatura universal. 

Trata-se de crítica de quem leu, em leitura fina, análise de quem se fundamenta nessa leitura, afirmações de quem está informado quando à matéria sobre a qual escreve. 

Leitura fina, digo, pois que, encontro-o revelado nas suas próprias palavras: 

«Rigorosamente, nenhum crítico deveria pronunciar-se sobre uma obra literária senão após três leituras. E seria ideal, para além disso, que fossem feitas com largo intervalo umas das outras.» 

O que avulta, porém, nesta obra e julgo digno de menção, não é a bagagem erudita do crítico, o inventário da biblioteca lida, menos ainda ponderar aquilo em que o futuro veio desmentir as suas conjecturas quanto ao sucesso de alguns a quem vaticinou carreira. 

O que, permitam-me considerar decisivamente relevante ante este livro, é ter encontrado nele espelhada a coragem e a honradez do seu autor. 

Escrevendo-lhe do Brasil, a 6 de Dezembro de 1954, o director da Edições Dois Mundos revela-lhe:

«O autor, Casais Monteiro, declarou-me pessoalmente que considera o seu livro como uma das obras mais honestas e de maior valor que se têm publicado em Portugal nos últimos anos». 

Escrevendo-lhe directamente, a 24 de Agosto de 1954, numa carta preenchida com notas de leitura pormenorizada, José Fernandes Fafe, faz-lhe sentir:

«Li o seu livro com toda a atenção de que sou capaz. E, antes de mais, deixe-me dizer-lhe que todas as páginas praticam a honestidade do mister crítico, teorizada, com muita actualidade, na denúncia que faz da “crítica necessária”». 

Eugénio de Andrade, escrevendo-lhe a 31 de Julho desse mesmo ano, depois de ter lido a totalidade da obra, declara-lhe: 

«Antes de mais quero dizer-lhe que achei corajosa, desassombrada e limpa a sua visão da nossa literatura contemporânea. É tão rara essa coragem nos nossos dias e tal modo se perdeu o hábito de dizer a verdade» que aquilo que deveria ser norma passou a excepção». 

Idem na mesma perspectiva Fernando Lopes Graça, num cartão de visita pessoal: 

«Fernando Lopes Graça agradece ao Dr. Franco Nogueira a amabilidade da oferta do seu Jornal de Crítica Literária e felicita-o sinceramente pelas invulgares qualidades de penetração, honestidade e coragem de que no seu livro dá provas.» 

Coragem desde logo porque, funcionário diplomático já com responsabilidades funcionais significativas, não hesitou em ter tomado como referência escritores cuja ideologia e alinhamento político eram ostensivamente mais do que contra o governo de então, contra o regime, mais ainda do que contra este, contra o próprio sistema económico-social característico do mundo ocidental em que nos inserimos. 

Estão presentes, em extensas páginas do Jornal, Aquilino Ribeiro, Soeiro Pereira Gomes, Mário Dionísio, Carlos de Oliveira, com quem se viria a incompatibilizar, mesmo não convocando como relevante um Ferreira de Castro. E estão com a plena consciência por parte de quem avaliou as suas obras, das ideias políticas que professavam e da projecção que as mesmas tinham nessa escrita. 

Sabendo do risco, Alberto Franco Nogueira correu o risco; não tinha por si outra força do que a sua, outra autoridade do que a autoridade moral, sobretudo porque, para si, a arte pela arte era conceito caduco. 

Risco que, no entanto, não o poupou à irritação de expoentes da direita política mais radical, de que cito, entre outros António José Brito, monárquico e integralista, que sobre ele escreveu: 

«Vindo dos ambientes da esquerda, a sua percepção do interesse nacional levou-o a juntar-se a Salazar na defesa da integridade do território pátrio. Sem dúvida algo da sua formação originária lhe ficou presente e, por isso, nem sempre damos plena adesão à sua obra e às suas posições. Quando aborda o período do Estado Novo no volume consagrado a essa época, editado pela Livraria Civilização, as páginas que dedica à vida cultural, com destaque exagerado para a mera Literatura e, nela, para os escritores da oposição, elogiados bem além dos méritos e elencados com minúcia (que não se verifica para outros, de quadrante oposto), são páginas que me causaram compreensível irritação.» 

Coragem também porque, tomando, como veremos, posição clara contra a escrita-panfleto, a redução da arte à propaganda, soube, precisamente em coerência com esses princípios, censurar, de modo ostensivo e desassombrado, todos os livros que haviam sido escritos por Francisco Costa, escritor assumidamente católico e que fazia da mensagem católica tema da sua escrita, mas num estilo em que: 

«[…] os primeiros trabalhos foram mais obras panfletárias ou apologéticas do que romance.» 

Mas entendamo-nos para que não haja mal-entendidos. Para Franco Nogueira: 

«O catolicismo de modo nenhum é inibitório de realizações artísticas. Sob certos aspectos, pode mesmo dizer-se que dá ao artista uma maior liberdade e amplitude de criação.» 

Mas o que está em causa, e no entender do crítico, desvaloriza a obra e a sua intemporalidade é que: 

«Os seus romances são mais do que católicos: mostram que o desejam ser; que foram escritos para defesa e apologia do catolicismo; que são premeditada e intencionalmente, meros instrumentos ao serviço de uma doutrina e de uma mística.» 

E, no entanto, ao abordar uma obra como Uma Abelha na Chuva, de Carlos de Oliveira, reconhece, contabilizando-as, ideologia do autor e natureza artística da obra, e por isso escreve: 

«Neste particular, poder-se-ia dizer que se trata de uma novela obedecendo a uma concepção ideológica precisa e com um intuito determinado. Mas Carlos de Oliveira é estruturalmente artista e para ele a arte sobrepõe-se a quaisquer considerações extra-literárias: a sua novela nunca é um panfleto: é, de facto, uma obra de arte.» 

Honradez, disse, porque soube declarar virtudes onde as encontrou, esconjurar defeitos onde eles se encontravam. 

Escrevendo-lhe a 2 de Agosto de 1954, Marcello Caetano, então Presidente da Câmara Corporativa, anima-o, primeiro com um pedido de compreensão: 

«Levei tempo a ler o seu Jornal de Crítica Literária não só porque leio devagar (sobretudo quando a leitura se presta à reflexão) como porque estes dois últimos meses foram para mim de grande fadiga – são os meses de exame e eu fiz 442 provas orais!» 

Mas continua: 

«O seu livro é um livro sério – o livro de um homem inteligente e culto, que parte de certos princípios críticos e que sabe ser fiel às suas regras formais.» 

Franco Nogueira escreve este livro com a consciência de que o seu tempo literário era o do elogio generalizado, de que os jornais prodigalizavam encómios a tal ponto monótono que todos os livros pareciam, sem excepção, serem obras-primas. 

E, no entanto, há na sua avaliação sempre o mesmo registo de contida moderação, furtando-se a denegrir. 

Dele não se poderá dizer, como de tantos, que o crítico quer sucesso na medida de ter sido um escritor falhado. Senhor da arte da prosa, não se lhe conhece obra publicada na ficção ou na poesia. O livro de poemas que escreveu, e está inédito, redigiu-o quando de 28 de Setembro de 1974 a Maio de 1975, com a dignidade de a sofrer sem queixume, esteve em prisão no Forte Caxias. Chamou-lhe O Vento e as Grades. 

Estamos, pois, ante uma postura senhorial, até pela modéstia com que entoa as suas afirmações, sempre sob ressalva, a benefício de outra melhor opinião. 

Alberto Franco Nogueira escreveu o Jornal de Crítica Literária bem sabendo que tal não seria patamar para o que fosse na vida social, bem consciente de que se tratava de opção atípica na profissão que escolhera, advertido até do embaraço que poderia daí resultar. 

Trata-se de momento agónico na sua vida literária; tudo tinha começado, como no-lo recordou Henrique Martins de Carvalho, seu condiscípulo, com o contacto, ainda aluno da Faculdade de Direito, «com os jovens escritores que cultivavam o neo-realismo ou escreviam na Seara Nova ou no Novo Cancioneiro.» 

Posto isto, acompanhemo-lo na sua análise crítica para lhe descortinar a razão e o modo. 

Nota-se, em primeiro lugar, um apreço seu pelo profissionalismo, fruto da tenacidade e do aprimoramento da obra literária. 

Franco Nogueira está consciente da medida em que escritor de uma obra só não é digno ainda de se considerar como tal e, com igual lógica, segue atento, em relação àqueles cujos livros estuda, o percurso literário tal como se projectou nos sucessivos livros publicados. 

À reiteração teimosa na produção literária, junta, por outro lado, a minúcia que é a antítese da improvisação. É isso que regista em Carlos de Oliveira, ao censurar-lhe o livro Alcateia, por contraponto à obra A Casa na Duna, este publicado em 1944 aquele um ano antes, já que para si: 

«O artista dotado de grande facilidade de realização terá tendência para resvalar aos poucos numa improvisação artística». 

Eis porque conclui, resumindo o seu pensamento: 

«Não vimos nós, por exemplo, um romancista português, consagrado e de numeroso público, afirmar num dado momento que o seu programa literário consistia em escrever e editar dois livros todos os três anos? Quando um artista chega a esta sistematização da sua personalidade poderemos recear o embotamento das suas faculdades.» 

Sente o que diz a propósito dos primórdios da obra de Fernando Namora na poesia e reportando-se ao nosso meio literário: 

«Alguns limitam-se a um livro de versos e nada mais publicam: para estes, quase sempre adolescentes, a literatura é simplesmente um processo de satisfazer a sua vaidade pessoal.» 

De Aquilino Ribeiro diz, por exemplo, que «todos os volumes subsequentes são uma projecção, um desdobramento, uma ampliação dos contos inseridos em Jardim de Tormentas, esse «livro de mocidade», publicado em 1915, tinha Aquilino já trinta anos. 

Do ponto de vista da forma, Franco Nogueira mostra quanto a técnica da escrita é para si o ponto de observação indispensável a uma correcta valoração das obras sobre as quais incide a sua culta observação. 

É, em primeiro lugar, o tema do estilo, um dos critérios reitores da aferição da boa literatura. 

Em Aquilino Ribeiro, por exemplo, encontra o tema «o acto de criação é estilo», «a realidade corporiza-se em estilo». 

É essa transmutação da «realidade circundante numa outra realidade formal independente e pessoal» que é para si característico da Arte; realidade pessoal, no entanto, como sublinha, quando escreve sobre José Gomes Ferreira e o seu livro O Mundos dos Outros, publicado em 1950 com prefácio de Mário Dionísio, que 

«[...] não obstante a independência da obra de arte, por detrás desta paira sempre a personalidade do artista.» 

mas, sem prejuízo desta prevenção: 

«[…] há que estabelecer uma cuidada distinção entre o seu aspecto literário e o seu aspecto pessoal. Perante este há que manter um escrupuloso respeito. Perante aquele, a crítica pode ir até onde lhe permitirem os dados fornecidos pela análise da obra». 

Em Fernando Namora, concretamente em A Noite e a Madrugada, obra em que, apesar de a considerar «frouxa», encontra nas páginas dedicadas ao episódio do cerco dos contrabandistas o que lhe permite afirmar: 

«[…] pela sua intensidade, pelo seu vigor, pela sua flagrância, pelo dramatismo das situações, pelo recorte dos personagens, pelo seu movimento geral, essas páginas são das mais notáveis da literatura portuguesa dos nossos dias». 

Namora que, em contrapartida e mau grado o reparo adverso, teve a suma categoria pessoal de, em carta de 12 de Agosto de 1954, lhe ter escrito: 

«Muito obrigado pelo seu livro – um belo e sereno livro. Quanto a mim uma das melhores obras que têm sido publicadas em Portugal.» 

Enfim, é o domínio da linguagem, a riqueza vocabular, a construção frásica. 

Se em Aquilino Ribeiro, Franco Nogueira encontra o óbvio, a banalização de expressões não comuns, um vocabulário de dupla raiz «erudita e humanista umas vezes; noutras, popular e regionalista», não se coíbe de considerar que, em alguns passos, o autor do Malhadinhas «vai ao ponto do exagero», do mesmo modo que lhe assinala «a inusitada construção das frases», afinal, «tudo a faculdade de se exprimir sensorialmente», em suma, o suficiente para, em remate de avaliação, o considerar «o maior estilista e o maior prosador português da actualidade». 

É esse exprimir-se sensorialmente que capta a sensibilidade do crítico Franco Nogueira e assim também em Fernando Namora ele recorta: 

«Namora tem um dom especial de usar as palavras de modo a tornar-nos o que descreve plasticamente vivo». 

Se, em relação a Aquilino Ribeiro, coragem teve para ter suscitado defeitos em quem já era um insigne prosador, mais ainda, depois daquele superlativo citado quanto à valia do examinado, considerou, em juízo crítico censuratório que um romance como Maria Benigna é exemplo de um dos «trabalhos nitidamente falhados como construção romanesca», pois, mais uma vez nas suas palavras «Aquilino demonstra aí uma completa inabilidade para o romance citadino». 

Mas não é só questão de intrepidez é que, a fundamentar a sua asserção, Franco Nogueira dá mostra de uma agudeza de análise que não pode passar sem registo. 

Para si «a grande, a excepcional capacidade de Aquilino está toda na análise psicológica em profundidade ou em extensão. Revela-se inapto a uma análise psicológica em profundidade ou em cunha, a uma investigação subterrânea da pessoa humana». 

Já no que à substância respeita, é aí que se centra, no tempo histórico em que escreveu, o cerne da questão que, sendo polémica, encontra a linha axial delimitadora do que é arte face ao que é propaganda. 

É sabido que os anos da guerra e do pós-guerra – e como guerra refiro-me à que ensanguentou a Europa entre 1939/1945 – o grande tema da vida intelectual europeia era saber se a Arte, e de todas elas a Literatura, deveriam estar ao serviço de uma causa, e naturalmente, que oriunda a ideia das esquerdas, alinhando necessariamente o artista e o escritor com a causa dos desfavorecidos e, mais restritamente do proletariado, em prol da paz, forma de engobar, em frente unitária, o denominado antifascismo. 

Tudo isso trouxe debate público e esteve na origem de obras que de técnica literária tinham pouco, mas que, na valoração global que então polarizava os espíritos, havia quem considerasse que, pelo seu conteúdo militante, haveriam de ser consideradas como obras de referência, ao serviço do povo. 

De tal modo se enraizou o problema que, ainda em 1954, Álvaro Cunhal, escrevendo a partir do Estabelecimento Prisional de Lisboa, sob o pseudónimo de António Vale, faria chegar à revista Vértice, editada a partir de Coimbra, um texto, intitulado Cinco Notas sobre Forma e Conteúdo, no qual, tenta, em ponto de ordem à polémica, a dialética de conjunção dos dois termos do binómio, o conteúdo e a forma, através da valorização deste como instrumento da forma. Citando-o neste trecho de bela extracção estética: 

«A indicação “primeiro o conteúdo!” visa estimular o artista a não sacrificar os seus mais belos sonhos à inabilidade, à indisciplina, à desobediência ou impaciência das próprias mãos. Visa estimular o artista a exigir das próprias mãos o trabalho, o esforço, a paciência, a tenacidade, a perseverança, a audácia, para realizar os seus sonhos mais queridos. É evidente que (mesmo considerando o “momento da criação artística”), o amor pela arte, o espírito criador, o caminho para o enriquecimento e renovação formais, está da parte daqueles que dizem “primeiro o conteúdo!” e querem que as mãos sirvam para realizar o sonho. O acanhamento, a hostilidade a uma arte renovadora, a estagnação formal, da parte daqueles que gritam “o assunto depois!”, que sacrificam assim os sonhos à inabilidade das mãos, às deficiências e limitações formais se é que, mais comodamente ainda, não deixam de sonhar.» 

Alberto Franco Nogueira não é imune a este contexto. Está seguramente ao lado da literatura que sente as dores humanas, que se coloca ao lado dos explorados e dos humilhados. 

Nota-se quando, por exemplo, ao analisar Ferreira de Castro nele encontra o que entende adequado chamar «literatura de simpatia humana», a «preocupação do drama social» e valoriza positivamente esse alinhamento, não deixando, porém, sem reparo que o livro A Curva da Estrada, publicado em 1950, é «talvez» - e veja-se a delicada elegância desta forma adverbial dubitativa a evitar a arrogância assertiva que outros teriam - «tenha sido um livro oportunista no ponto de vista político.» 

E é então que surge, ostensivamente exposta, a questão da intemporalidade como vector essencial da avaliação de uma obra literária, ressalvando, como diz a certo passo que «uma obra de arte impõe-se aos vindouros e subsiste no tempo por qualidades diferentes das que foram encontradas pelos seus contemporâneos». 

Diz Franco Nogueira sobre esta obra de Ferreira de Castro, projectando a conclusão para a obra futura cuja continuidade já adivinhava: 

«[…] será mesmo de recear que, sem embargo das suas inegáveis virtudes, toda a obra de Ferreira de Castro – demasiado temporal, excessivamente ditada por solicitações de momento, humanitária sem chegar a ser humana – possa ser vítima de preocupações ou das necessidades transitórias de espírito que, até agora, a tem motivado». 

Este mesmo critério, pois que fruto de verticalidade intelectual, aplica-o Franco Nogueira à obra de alguém mais próximo dos ideais de conservadorismo político, Joaquim Paço d’ Arcos, a quem descortina três fases na respectiva obra, a primeira a biográfica, a segunda sobre os «vícios e preconceitos» da pequena burguesia lisboeta, a terceira a «cosmopolita» mas em quem verifica que «sofre muitas limitações que roubam à sua obra profundidade e duração». 

E porquê, perguntar-se-á o leitor? Porque, segue Franco Nogueira: 

«[…] escasseiam elementos de recriação que as intemporalizam; os dramas dos seus personagens são demasiado afirmados e pouco sentidos; o seu universalismo, mais geográfico e espacial do que humano e psicológico, tem por base somente nomes estranhos e terras exóticas; e a realidade da acção funda-se numa objectividade material e fotográfica de que se não soube extrair uma segunda realidade que domine artisticamente a primeira e que, revelando-a, a ela se sobreponha sob o influxo da imaginação criadora». 

Lançados assim os eixos do pensamento do crítico literário, não destoam no seu alinhamento em relação a cada um dos escritores sobre os quais incide a sua análise acutilante. Vejamos a simpatia por Miguel Torga e a distância por José Régio: neste detecta a bisonha clausura, naquele o «panteísmo telúrico». 

Em José Régio, Alberto Franco Nogueira acha – e acha que ele não superará essa condição - : 

«[…] o escritor que se recusa à vida: memorialista intelectualizado, esteta fechado sobre si próprio, egocentrista, alheio a emoções e estranho a dramas que não sejam os seus» 

a juntar a um escritor que segundo ele, é dos que «escreve por desfastio». 

Haverá nisto excesso, que a obra posterior de Régio viria a desmentir, mas não se pode negar estar-se ante ponto de partida congruente e rico de potencialidades analíticas. 

Em Torga, sobretudo no Torga poeta, Franco Nogueira acha: 

«[…] uma nitidez de linhas, uma clareza de expressão, um vigor de linguagem e de subtil imagística, por vezes um ritmo harmonioso, que fazem do autor do Cântico dos Homens um dos excepcionais poetas, adentro dos poetas maiores, da nossa actualidade literária». 

Mas não só ao poeta, sim também ao novelista, ao contista, Torga, Franco Nogueira dedica o seu entusiasmo a este «escritor [que] parece realizar-se e projectar-se completamente em qualquer género». 

Para o interpretar, dando-lhe sentido e linhagem, entronca-o na tradição literária mas aquela que seja a de um «cidadão livre do mundo e português», individualista, «mais próximo de um Herculano de botas cardadas, chapéu de abas e guarda-chuva no braço, visitando pomares e vinhedos, do que de um Garrett, aristocrático e amaneirado, pisando salões; é mais irmão de um Camilo, que partilha broa com um almocreve de Viseu, do que de um Eça, mundano e cosmopolita; é mais vizinho de um Aquilino, que de samarra percorre as feiras-francas nas estradas da Beira, do que de um José Régio, esteticista e misantropo intelectual». 

Excelente trecho, como magnífico este outro sobre o médico escritor: 

«[…] esse amor medular pela terra e pelos homens da terra tem qualquer coisa de divino». 

Veja-se agora como reagiu o granítico Torga, que não era tido por amável, a escrever-lhe, em jeito de pedido, a partir de Coimbra, a 5 de Julho de 1954 sobre o livro crítico que acabara de ler: 

«É, em minha fraca opinião, uma tentativa séria, e em muitos passos feliz, de clarificação do nosso confuso panorama literário actual. Apenas me apetecia pedir-lhe duas coisas: maior margem de esperança para certos jovens, a quem talvez não seja justo pôr já diante dos olhos a perspectiva do naufrágio e um pouco mais de paciência judicativa para obras que estão ainda a processar-se». 

Não quero esgotar o livro Jornal de Crítica Literária, tarefa aliás inviável, nem abusar do vosso tempo. 

Se trouxe este livro não é porque ele esgote toda a escrita de Franco Nogueira no domínio do seu contacto com a Literatura. É uma selecção de escritos saídos em jornais, no Diário Popular e também em A Semana, nesta de 1951 a 1953. É sobretudo um fim de uma «vocação autêntica» como bem afirma Manuel de Lucena ao ter ido ao encontro da sua biografia. 

Um fim com uma excepção, porque, como bem reparou, atento e minucioso Jesué Pinharanda Gomes, num artigo com que contribuiu para um volume de homenagem, publicado em 1999, organizada por Teresa de Melo Ribeiro, Manuel Vieira da Cruz e Gonçalo de Sampaio e Melo: 

«Franco Nogueira revisitou a literatura portuguesa, num acto de regresso ao princípio, quando a “Livraria Civilização” o incumbiu de escrever o volume suplementar à História de Portugal de Damião Peres. O extenso capítulo sobre a Vida Cultural é obra de meritória informação, ainda que de diferente valoração, ao conceder a primacialidade à literatura e às artes plásticas […]» 

«Uma obra vale por si ou não vale de todo» é frase com que este livro se inaugura. Frase de quem fez nome na vida pública, considerado e desprezado consoante os tempos históricos e por tempos históricos contrários teve de passar, mas, em síntese, cada vez mais respeitado, arrefecidas as pulsões ideológicas em favor de juízos mais serenos da vida e dos homens, esta obra vale por si. E muito. Através dela encontra-se não apenas alguma Literatura, não apenas uma época, e já seria muito, mas o culto da honradez no modo de julgar. E com que actualidade. Citando: 

«O público, é certo, já não acredita nas críticas que lê, tantas são as vezes em que tem sido ludibriado […] Os próprios autores criaram a psicologia do louvor. Deixa-os insatisfeitos tudo o que não seja aplauso incondicional ao que escrevem. […] Sobre as direcções dos jornais e revistas exercem-se pressões de toda a ordem; as direcções, por sua vez, transferem essa pressão para o crítico.» 

Franco Nogueira, crítico literário, Franco Nogueira ministro. 

Em uma carta pessoal, belíssima e comovente, escrita a 2 de Março de 1962, Fernando Piteira Santos, seu condiscípulo, a mulher então presa pela PIDE, lança-lhe, com dedicada elevação, a agonia da tremenda questão existencial que se pressente ante estas duas facetas do mesmo Homem, dois momentos de uma mesma vida: 

«Penso na distância entre a política sem futuro em relação à África de que é solidário e o estímulo das palavras que dedicou à contribuição do Castro Seromenho para uma “literatura negra verdadeira”. Pergunto-me se ao chegar a sua casa será capaz de reler os poemas de Manuel da Fonseca ou de José Gomes Ferreira? Pergunto-lhe se ainda lhe é consentido admirar um Casais Monteiro ou um Miguel Torga? Pergunto-lhe as páginas de “Uma Abelha na Chuva” ou os versos de “Terra de Harmonia” não terão para si hoje um acre e estranho sabor? Pergunto-me se do mistério das suas cores quentes, do traço exacto e forte, as camponesas do Pavia não o olham com desolado espanto?» 

Enfim: não sou crítico literário, nem universitário das letras, sou apenas um homem grato. É por gratidão à Aida Franco Nogueira e homenagem a seu Pai que escrevi este texto que acabo de vos ler, por gratidão à Universidade Lusíada, onde tentei ensinar durante dez anos, que me sinto honrado por lê-lo hoje aqui. 

Termino. O livro que me levou ao encontro de Alberto Franco Nogueira ostenta uma dedicatória íntima: 

«recordação longínqua de um moço que há muito morreu, esta lembrança de uma velha pedra da calçada que se agita». 

Melhor título não há para este momento de memória: uma velha pedra da calçada que se agita. 

Muito obrigado.