Lentamente, como se tivesse todo o tempo da vida e não tenho, li-o na íntegra. E não poderia ser de outro modo, até porque o pouco tempo deve ser oferecido ao que verdadeiramente importa, ida a irrelevância.
Se me perguntarem pelo fio da narrativa, não consigo reconstituir; se me pedirem para caracterizar as personagens que vão desfilando ao longo da história, também não consigo dizer. É por isso que não sou um crítico literário, apenas leitor que deixa apontamentos sobre quanto leu e, seduzido, tenta, escrevendo, convocar outros à sedução.
E, no entanto, dizem que em Agustina as figuras que retrata ao longo do que conta vão mudando e alguns perdem-se pelo caminho, e talvez assim seja, mas disso não dei conta, nem me parece que tenha sequer importância e até é benéfico que assim seja por aplacarem os remorsos de, tendo lido o que se conta, no final, não saber contar.
O Susto é um livro magnífico e tenho pena ao pensar que talvez já não o volte a ler.
Tenho o hábito insólito de estar atento ao momento em que surgiu a palavra ou a frase que dá título aos livros, como se em busca da pegada que assinale a ideia que gerou a criação. É um exercício minudente, eu sei, mas a vida não é só grandeza; desatento, como sei ser, é uma forma de disciplinar a concentração. E achei, e quando encontro surge um contentamento redobrado, para além daquele outro que provém de ter lido. E ali está, na página 287, desta edição original, tirada pela defunta Guimarães em 1958 - «[...] mas a vida não são, de resto, os assuntos que se nos oferecem, as experiências que sofremos - e, acima de tudo, o susto.» - e de novo, em modo fugaz na página 324: «o susto tinha-o pois dominado.»
Sei que há quem deteste Agustina por causa dos seus aforismos e tenho comigo o livro Aforismos que a mesma editora - ó fúria dos irritados - publicou em 1988 e em cujo pórtico surge, em jeito de explicação, a lógica deste modo de escrever enleando o texto em máximas e sentenças: «o meu pensamento estende-se de uma maneira caótica e para o deter recorro ao aforismo. E dou muita importância aos aforismos; são uma fuga ao pensamento.». E seguramente dá importância, porque, para si, como o assinala a contracapa dessa obra: «o aforismo é uma lição, e não o pretexto para uma pirueta».
Leio, já o disse aqui, de lápis na mão a sublinhar e fica como critério, o quanto sublinhei, na horizontal a frase, na vertical todo o período, o parágrafo, por vezes as páginas inteiras onde seria impossível destacar um excerto breve como digno de realce: aqui muitíssimo.
Posto isso, é, porém, impossível trazer aqui a lição que esse modo de escrever traz, pois é experiência íntima, intrespassável, redundaria em ofensa se fosse tentado. E, no entanto, é o que apeteceria fazer, de modo tão estridente quanto está vincado na sensibilidade.
Deixo, num outro registo, o arrebatador, o modo como arranca esta escrita: «Num povo pessimista, não o bastante para ser neurótico, nem exasperado para ser sobre-humano, depara-se-nos às vezes certo fenómeno de combustão interior que é pouco menos que uma nova ética». É uma frase típica, desconcertante pelo remate, porque do encadeado do raciocínio esperava-se uma diversa conclusão. Tantas suas são precisamente assim, a surpreender, trazendo o leitor de novo ao dito e vendo que ilusório era o pensado ante um novo pensar aquele encadeado de ideias, aquele jorro de sentimento.
E, ainda em outro, esta também: «E no seu andar rápido, há uma despedida e a justa fugacidade da juventude.»: lê-se e graficamente como se «rápida, a sombra» [perdoe-se a incursão por outro autor] vemos escapar o tempo restante na simbólica nostálgica de um adeus.
Não escrevo mais, apesar do desejo. É sábado à tarde e hoje está Sol. Seja a contenção desta breve nota convite à leitura, pois o livro é encontrável em edição contemporânea, publicado em 2019 pela Relógio de Água, que, em feliz hora, retomou a edição do cânone.