Ladislau Patrício, médico, nascido na Guarda em 1883, falecendo em 1967, dedicou-se, para além da sua profissão, também à escrita, pois já houve e sempre haverá quem seja assim.
Nenhuma obra sua consta da base da Biblioteca Nacional, ali só um apontamento biográfico, editado em 2004, pela Câmara Municipal da cidade, da autoria de Helder Sequeira. Tem nome de rua em Lisboa, na zona do Lumiar, sendo natural do Porto e tendo vivido na terra dos guardenses.
Encontrei, em alfarrabista, um dos seus livros de crónicas e versos, publicado em 1927 pela entretanto extinta Livraria Rodrigues, Editores, com sede em Lisboa, na Rua do Ouro, com autógrafo de dedicatória ao seu colega «gentilíssimo espírito» Dr. Augusto d'Esaguy, ele também escritor e condecorado inclusivamente pelo Governo cubano e pelo português com a Torre e Espada. Intitula-se O Mundo das Pequenas Coisas.
A obra transpira, em três das suas novelas, bom humor, rica sem excesso quanto ao vocabulário, escorreita e sedutora no estilo irónico. Os versos, que compila na segunda parte das 157 páginas, talvez sejam menos conseguidos. Cunhado do poeta Augusto Gil, não conseguiu guindar-se à altura do autor de Avena Rústica, a quem Lisboa dedica um jardim, ali pela Graça.
Há também, em jeito intimista, como excerto de memórias, um apontamento, escrito em 1908, sobre a festa local em homenagem a São João Baptista, de que ontem se comemorou o dia, e, sob o título Viagem Sentimental, a narrativa da intrusão sufocante de uma família no compartimento em que o autor fazia, supondo-se em sossego, uma viagem de comboio, grupo em que «o chefe do rancho era um homem nédio, sanguíneo, que rebocava uma senhora pesada (onde eu adivinhei a esposa) e mais duas raparigas e um garoto, de marinheiro, magrinho linfático e triste».
Mas é, sobretudo a História de proveito e Exemplo, que mais me atraiu, narrativa da prepotência e volubilidade de Anselmo, o farmacêutico local, dono de termómetro e barómetro e assim Senhor dos destinos dos que da meteorologia careciam tanto quanto da farmacopeia que aviava e manipulava, sujeito de aparente «preopinante vontade» mas que os ventos da História amoldariam.
Local ermo aquele, onde «os dias sucedem-se no entanto, ronceiros, bocejados, entre labaredas do firmamento implacável, de bronze, e a aflição da Natureza calcinada e triste».
E tudo sucede a 16 de Maio de 1906, precisamente, com a queda do ministério e a nomeação real de João Franco, a lançar alvoroço naquele coração apertado do boticário. «Agora é que se vai ver o que é governar às direitas», clama, porque os outros, os da República velha, «por pouco que não põem o país a saque!», «súcia de gatunos!»
Adivinha-se o devir da narrativa. Aos poucos, os aderentes, essa mão cheia de adesivos que se achegam ao que parece pingar de prebendas, aproximavam-se e teimavam eles em tornar Anselmo presidente da Câmara. E que o dito tinha créditos, porque já tivera do cargo o mando, e, tendo de enfrentar uma greve das leiteiras da terra, que recusavam a venda, opinou, hábil no chiste, que pior seria, se a greve «em vez de ser feita pelas vendeiras, fosse feita pelas próprias vacas».
Quanto ao messiânico João Franco parecia ungido de vantagens e sobretudo não se lhe encontrava o que seria um grave inconveniente, pois «era um homem rico, circunstância eminentemente favorável à precária resistência do Tesouro». Ademais, era valente: «Olha quem! Se lhe constar que a uma esquina está alguém com cacete à espera dele é quando lá passa mais depressa...»
E ei-lo, pois, franquista. Só que a política é mutante e o tempo passou. Quatro anos volveram rápidos.
Em suma, abreviando a história, chega um portador de Moimenta com a notícia. Revolução em Lisboa, mataram o rei, a capital do Tejo «num mar de sangue».
Ora tudo isto trazia uma grave alteração de circunstâncias. Não por Lisboa estar «num mar de sangue», já que, naquela lógica de um só povo uma só nação «nós cá não temos nada com isso: é lá com eles!». Problema é que, já agora e indo ao osso da questão, «República ou Monarquia, que importa? O que é preciso é haver quem nos Governe». Ordem, pois, e mando!
Só que, içada a 5 de Outubro, na Câmara local, o pavilhão revolucionário verde e rubro, Anselmo tem o coração pendente. O caos ajuda à hesitação. «Tinham-se efectuado capturas de funcionários e demissões; surgiam ali e aqui desacordos, antipatias, notas desafinadas no geral concerto; havia descontentes; principiava a falar-se vagamente de conspiradores», a somar a assaltos aos jornais monárquicos, perseguição aos bispos e ao demais clero.
Convidado a dar apoio às incursões monárquicas de Paiva Couceiro, recusa dinheiro, cauteloso, nega-se a esconder pistolas, promete apenas ao anónimo emissário «estricnina e sal-de-azedas», aquele veneno, este um óleo branqueador. E apoio moral!
Tal nega é, aliás, indiferente, pois está-se na antecâmara do fim dos insurrectos. A projectada incursão «deu em droga» e, duas semanas depois, quando se anunciou na Vila a visita oficial do ministro do Interior, «em viagem de propaganda e apaziguamento», «Anselmo, já perfeitamente integrado no regime, proferiu um discurso de efeito no banquete na Câmara Municipal».
Dois lapsos, porém, actos falhados lhe chamaria Sigmund Freud, ensombrariam, porém, a verve do tribuno reconvertido e erudito.
Aos brindes saudara «À sua, senhor ministro do Reino!» Mas, rápido na rectificação da gaffe, ei-lo que proclama que «bebia à saúde de Anselmo Ferreira Chifarote, livre-pensador!», ante o que, o Sequeira, personagem local, rematou mordazmente: «Parece que o estou a ver de lanterna e de opa na procissão do Senhor dos Passos...».
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Foto: Arquivo da Câmara Municipal da Guarda