Foi este livro que me trouxe Lima Barreto. A partir daqui, a gentileza do meu fraterno amigo Ernane Catroli do Carmo, com quem partilhei a ânsia, obsequiou-me com outros, entre os quais um livro de contos, que a Editora Brasiliense deu à estampa em 1979, sob o título A Nova Califórnia, a colectânea Prosa Selecta, publicada pela Editora Aguilar, em 2006, naquele magnífico papel bíblia que tanto seduz pela maciez e pelo milagre de não deixar transparência, e onde estão romances, sátiras, a memorialística, tudo assistido por bibliografia, índice, introdução geral e comentários de apreço de vultos da cultura brasileira.
A juntar à generosidade, Catroli, que é médico e ser das Letras, juntou ainda a edição original, de 1956, da já referida Editora Brasiliense, que contém o Diário Íntimo, com prefácio, datado de 1954, de Gylberto Freire, texto complementado com notas explicativas que a edição da Prosa Selecta não contém. E tudo isso veio do Brasil, sujeito aqui a taxa alfandegária, que é a forma que a Fazenda lusa tem de explorar a cultura, mesmo sendo livros de oferta pessoal, colectando até amabilidades.
A todos esses livro voltarei, depois de os ler. Estou a terminar os contos. E tenho outros, entretanto, a aguardar os interstícios do tempo.
Vida e Morte de J. M. Gonzaga de Sá, escrito entre 1906 e 1907, mas só publicado em 1919, é livro mimoso na sua confecção. Editou-o, em 2021, a Húmus, editora situada em Ribeirão, Vila Nova de Famalicão, inserindo-o na sua colecção A Ilha. Pertence à categoria dos livros em offset, «cadernos cosidos, com folhas não aparadas, como no passado», ligando assim a colecção à História do Livro.
Li-o cuidadosamente. Anoto apenas, e com mágoa, que, no título, o nome da personagem surge grafado como «J. M. Gonzaga de Sá», quando na verdade o seu nome é Manuel Joaquim Gonzaga de Sá. E «M. J.» é, de facto, o da edição original e suas repetidas reedições.
Há na escrita de Afonso Henriques Lima Barreto a manifestação do génio, a evidência de cultura notável, a expressão estilística que faz ressaltar a ironia e confere à nostalgia maior densidade e extensão.
Vítima de uma vida conturbada, minada pelo álcool e convergentes males psiquiátricos, assombrada pela loucura de seu pai, sucessivamente reprovado em exames escolares, da Mecânica ao Cálculo e até à Medicina, é como amanuense da Directoria do Expediente da Secretaria da Guerra, que encontra o seu ganha-pão, dando livre curso à sua produção literária e envolvimento na formação de agremiações culturais, candidato frustrado à Academia de Letras brasileira.
Mas nada ressalta, porém, aqui dessa tragédia em que o próprio fim impressiona: Lima Barreto faleceria a 1 de Novembro de 1922, dois dias antes da morte de seu pai. Tinha 41 anos. O corpo viveu de menos para a grandeza de sua alma.
Fica, sim, como traço do personagem, a vida burocrática, autobiográfica mesmo, Gonzaga de Sá, ocioso funcionário da Secretaria dos Cultos, onde se burocratizava o necessário para a gestão, incluindo a protocolar, de variados credos, em que «imãs, muezins, bispos, lamas, bonzos, dervixes, foram postos ao lado uns dos outros camarariamente».
E é neste contexto que abre, risonha, a primeira questão de suma gravidade à escala daquele mundo de insignificâncias: o Bispo de Tocatins, ao entrar no porto de Belém, havia sido recebido com dezessete tiros de salva, mas reclamava ter direito a dezoito, citando em abono «basto cabedal de textos e leis», o que gerou consulta necessária «ao estabelecido na legislação dos povos civilizados ou não» e o parecer das grandes repartições técnicas do ministério.
E continua Lima Barreto o que foi o entendimento dessas doutas instâncias da Administração: «A informação da secção de artilharia recordou por alto a teoria da separação de poderes; a divisão de Justiça, porém, abandonando as leis, os tratadistas, baseou-se em questões teóricas de artilharia, desenvolveu cálculos, para mostrar os fundamentos da queixa de Sua Reverendíssima». E assim sucessivamente, para gáudio do leitor.
Não contarei aqui a a narrativa, apelo, sim, à leitura da obra. Num mundo de indisposições, dá alento.
Registo também o modo de dizer, a que a língua portuguesa, tal como no Brasil se expressa, dá corpo, mas que o estilo de Lima Barreto potencia, gerando no leitor atento a necessidade de suspender o correr da leitura para pensar numa palavra, em uma frase. É o «mar espelhejante e móvel», o «séquito de palmeiras pensativas», «a voz pausada, cheia de mansuetude e bondade», o «lucuresco hoteleiro» e tantas mais.
E, depois, o modo de compor as frases: a limitada história sentimental de Gonzaga, que «não foi casado, esqueceu-se disso», «o futuro escriturário [que] não dava para o rodapé; declarou-se "besta" e fez um concursozinho de amanuense, e foi indo», que «ficou como um escolar que sabe geometria a viver numa aldeia de gafanhotoso», o ministro, Juca Paranhos, que era «uma mediocridade supimpa [...], um atrasado que a ganância das gazetas sagrou e a bobagem da multidão fez um Deus», as costureiras, esses «pálidos infusórios da sociedade», operando aquele «ajustamento torturado de panos às carnes» e por aí fora.
Enfim, a constante presença nessa escrita de um cultura literária e filosófica, fruto de autodidactismo, a menção a Poincaré, a Renan, a Abelardo, a La Fontaine, Edgar Poe, Augusto Comte e tantos outros. E não por teatro de exibição, sim no a propósito que a torna a referência justificada e disso ressalta o conhecimento de causa.
Na invulgar e monumental de Lima Barreto, editada em 2017 pela Companhia das Letras, Lilia Moritz Schwarcz, apodou-o de «triste visionário» e cita-o quando afirmou que qualquer vida é feita «de muitas vidas e muitas existências». Assim a sua grandeza, assim o cansaço esgotante que a persegue.