domingo, 22 de abril de 2012

Vidas secas

Li-o, enfim, melhor, comecei enfim a lê-lo. Uma escrita descarnada, calcificada, carregada de terra e de gente que com a terra se confunde e de animais, literatura de caminhante e de desolação, a seca a corroer tudo, maldita, gretando as almas, espinhosa, murchando tudo e enrugando os seres. 
É o pequeno e grandioso livro de Graciliano Ramos, Vidas Secas. Uma história de Nordeste em que se pressente, no horizonte da mansidão submissa, o urdir da raiva e com ela o Cangaço revoltoso.
Obra excelente em que a batalha da forma se irmana com a luta pelo conteúdo. Manifesto e Arte, ideologia e sentimentos. E sobretudo uma intrínseca humanidade.
Vou a meio porque dói. Na página 53.

sábado, 7 de abril de 2012

Ai Lello...

Tarde de sábado, livraria cheia, corropio escada abaixo, escada acima, um mundo de com licença, desculpe. Muitos estrangeiros, uma brasileira embevecida com um álbum sobre os "príncipes de Portugal", um espanhol em busca do «senhor Pessoa». 
Fui ali porque me lembrei que talvez tivessem algum livro da Dalila Lello Pereira da Costa. Não porque eu não julgue tê-los quase todos, mas porque há sempre algo que falha quando amamos um autor e ele nos retribui com uma obra numerosa. Da última vez que lá estivera remeteram-me para o andar de cima, onde, entre trastes de adelo sem interesse, sem nexo nem arranjo, ali estava um opúsculo seu, que afinal eu já tinha.
Mas fui, uma vez mais, na ingénua suposição que sendo uma autora «da casa», tivessem organizado ali, pois que recentemente falecida, algum pequeno pecúlio com o que de essencial ela escreveu, ou talvez tivesse surgido uma daquelas colectâneas de homenagem, mesmo que seja a dos vivos a engalanar a vaidade com o terem conhecido, vagamente que seja, o morto escritor.
Mas não tive tempo de apurar. No burburinho sabático, enquanto eu vasculhava, já desanimado, pelas terras do nada que interesse, um berro surgiu, vindo dos fundos do andar superior, lançado, qual tiro de caçadeira, rumo ao magote pequeno onde eu me ajuntava, já em recta descendente. Alguém, ó deuses, tinha tirado uma fotografia!
Atarantado naquele matagal de livros inúteis, atingindo pela chumbada generalizadora do "guarda-florestal" ainda levantei, hesitante, qual coelho pascal assustadiço, as orelhas alçadas, o dedo num «eu?» inquiridor, tímido, já porque no instante estava de facto de telefone na mão, apontando um número, e vá lá saber-se quando, apanhado em comprometedora ambiguidade, se passa de suspeito a réu. 
Com o seu estilo agreste e sem se levantar do lugar de onde policiava o piso, o zelador livresco anti-imagético, ainda com a mão em riste, ondulante qual ofídeo, apartava entre os atónitos circunstantes, a sua vítima, resolvendo-se num «não não, aquela senhora ali, que eu bem vi disparar o flash». 
Foi então que urdiu a fuzilaria argumentativa: é que não se podiam tirar fotografias e que mais isto e tanto aquilo que, na retaliação possível, deixei os dois livros que já trazia comigo cuidadosamente numa estante ao lado de uma rima de coisa nenhuma sobre horticultura e outras utilidades passíveis de roedura. Fique com eles quem trata leitores assim!
Ali ficou um Pitigrilli e um José Augusto França. Este sobre os anos vinte, os do fascismo, aquele sobre os paradoxos. A propósito.
A contenda passou para o andar de baixo, agora com o dono da casa a intervir. A pobre cliente, que afinal não tirara fotografias, enchia-se de desculpas. Quanto ao modo brutamontes como o assunto havia sido tratado nem palavra de jeito. Para quê? 
Rematou tudo com o patrão, à porta da rua, irado, também de dedo em pistola, dando ainda lições de moral, na base do «se houve erro, todos erramos». 
Subia-se a rua e ainda se ouvia o sujeito vociferar o «eu erro, tu erras, ele erra..». Mestre escola de si mesmo, vinte valores em gramática, zero em educação cívica. 
Que pena tenha sido assim. Neste dia, naquele lugar.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Agosto Azul

Dia que para tantos é de arroxeada mortificação, expiando do mundo as dores e purgando da alma as chagas, dia de calvário e prostração, dou comigo a ler o Manuel Teixeira Gomes, naquela miscigenação do céu com o mar e dos sentimentos com as sensações. Literatura de carnalidade, de anseios febris e desilusões vingadas na comunhão artística, viandante pelas terras do Belo, nascida da luxúria que o tempo não consome, da degenerescência com que a idade corrompe.
Agosto Azul. Livro estranho, como se sintomaticamente sem género, escandalosamente surpreendente ao virar de escusa esquina no volteio inesperado de uma folha epistolar. 
E dou com ele, contando-se, cevando o ferido orgulho macho, cortejador impenitente, pois que a exibia pelo braço, esplêndida fêmea, «fonte de celestes amavios», «manjar branco», adivinhada maciez ao acto e afinal sáfica, «inapaziguavelmente sáfica», e tendo-o por condutor e conduzido, a orientá-la por bordéis, para que, ali no serralho também ela se servisse do que lhe apaziguava a lascívia, mulheres fáceis, e ele, rasgando-se-lhe no coração a dor da impossibilidade, que a contemplação não sarava, alodado no vício, dele consciente, incapaz de lhe escapar, subrogado ali e assim se substituindo.
Dia de espera, hoje, morto o corpo, a alma sustém a respiração. Ressurgirá, como sinos de catedral, rebates de consciência, no homem integral, no máximo esplendor do pináculo das suas virtudes, nas catacumbas dos seus pecados. Domingo.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

LOL, LOL, LOL, Rivarol

Ri-me a bom rir com a ironia elegante do Eugénio Lisboa quando no último JL conta quando lhe pediram para as Correntes d' Escrita que comentasse um aforismo de Antoine de Rivarol que lhe foi apresentado assim: «as ideias são fundos que nunca dão juros nas mãos do talento».
Imagino um dos tantos "intelectuais" da nossa praça ante tal frase a explorarem-lhe doutamente o "non sense", a focarem-lhe, em desconstrução, o sentido revertido decorrente da formulação, em lógica dialéctica a tentarem a síntese unificadora da contradição, entre a pragmática e a semiótica, em suma, a não terem feito, enfim, o que este homem de uma profunda cultura, intensa erudição e grandiosa humildade fez: foi à fonte conferir a frase porque «depois de ter quebrado a cabeça a tentar achar-lhe sentido» se resolveu ir ver se o seu autor - que morreu em 1801 e se fazia passar por "conde" sem o ser - realmente a tinha proferido. 
Ora aí chegou à conclusão que o autor da frase tinha dito exactamente o contrário do que lhe tinham dito ter sido dito e assim a frase exacta era «as ideias são um capital que só rende juros nas mãos do talento». Ou seja era uma troca de um «só» por um «nunca».
São estes sim os juros do talento, distribuídos generosamente a todos nós.