Uma amiga minha enviou-me um link para os mapas de metropolitano de todo o mundo. No mundo subterrâneo dos que têm de encafuar-se em obrigações, um instrumento desses é mais do que indispensável. Tal como os que fazem vidas clandestinas, refugiados na marginalidade, criaturas da noite e homens da bicicleta, as entranhas da terra são como que uma mãe amiga, esconderijo seguro e lugar de paz. «Vem ao interior da terra e rectificando encontrarás a lápide oculta», escreve-se na câmara de reflexões, uma caveira por companhia. Depois há a luz crua da realidade, apagada a bruxuleante vela da ilusão.
quarta-feira, 23 de abril de 2008
segunda-feira, 14 de abril de 2008
O eu
Através do Eugénio Lisboa revi o José Régio. Depois encontrei-o um dia em Sintra e uma outra passeando em Cascais. Arredio do mundo público da Literatura e das suas tricas, maravilho-me com tudo o que vejo. Esta semana no JL vi que ele tinha escrito sobre si próprio. Não deixei de comparar. Com que desvelo ele escreveu sobre o Régio e com que parcimónia fala de si. Em nossa casa o «eu» era muito mal visto li na biografia de um dos de 'Medici, a propósito de um livro de que estou a rever provas. É isto que marca a grandeza, é sobretudo isto que separa os grandes das miudezas pequenas.
domingo, 13 de abril de 2008
Sentimentos e qualidades
Esta noite encontrei enfim numa Bertrand, ali na Rua de Viriato, «O Homem sem Qualidades», que sabia iria ser publicado este mês, a partir da tradução do original alemão feita pelo João Barrento e que já procurara em vão. Ora eu a julgar que sairia no imediato um só volume, eis dois tomos, o primeiro muito espesso, tudo junto um esforço de perder fôlego e o Musil não se pode ler em passo de corrida, porque aperta o coração e esfalfa os sentimentos. Eis-me, por isso, agora em casa, desesperado, a olhar para eles, estes dois paralelipípedos de papel, e um terceiro ainda virá, sem saber quando me será possível ler o que neles se contém.
Amanhã pela manhã, regressa a rotina e vou ter de acordar de madrugada. Talvez devesse ler, antes de dormir, um texto auto-biográfico que o Eugénio Lisboa escreveu para o JL. Traz dele uma fotografia, oficial miliciano no Quartel em Portalegre como que a explicar porque há nele tanto do José Régio.
Mas estou cansado. Deveria ter começado a escrever, nem ler consigo.
quarta-feira, 9 de abril de 2008
A incontável felicidade
A arte de contar de Jorge Luís Borges não é apenas o saber condensar em poucas páginas uma biblioteca de ideias, mas o supremo saber ver tão profundamente cada uma das coisas que, sendo cego, só podiam estar nas entranhas anímicas de si. É impossível que este homem tenha morrido.
Encontrei há uns dias mais um dos seus livrinhos, na língua original. Trouxe-o comigo e como tantas vezes me sucede, comecei a lê-lo do fim.
Servido de uma memória de prodígio, de um cultura de excepção, o que mais maravilha em Borges é a capacidade de imaginar o irreal possível, tornando quase o absurdo desejável. Com ele o que não há, devia ser.
No caso, falava dos Yahoos uma inventada tribo de estupendos seres, que moravam em Mlch, nome que só parece invulgar a quem julgue que fazem falta vogais numa língua e a língua deles, povo estranho em que só alguns tinham nome - e para que haverá tudo e todos de ter nome? -era formada por monosílabos em que cada um traduz uma ideia geral , como nrz, por exemplo, que significava dispersão de manchas e tanto podia querer dizer céu estrelado como leopardo ou até um bando de aves ou tantas outras coisas, tudo dependendo do contexto e da expressão facial de quem dissesse, pelo que era impossível escrever-se, já que o idioma yahoo pressupunha que as pessoas falassem umas com as outras, não que se lessem, as ideias e os sentimentos expressos através de todo o corpo e seus gestos.
Mas vinha isto a propósito de tal excepcional povo ter um sistema numérico contado pelos dedos em que apenas quatro dígitos individualizavam o mundo da quantidade e assim um, dois, três, quatro, muitos, o polegar correspodendo ao infinito.
Ficou no presente real esse insólito sistema fabuloso de um passado inventado: perguntados sobre se vai tudo bem, erguemos o polegar para dizer que sim, o tudo bem, esse dedo a dizer da incontável felicidade do ser.
terça-feira, 8 de abril de 2008
O Emaús da escrita
Escreveu-me uma carta à mão, como já não se escrevem, com letra tão irregular como incertos os sentimentos que o animaram ao escrevê-la. E contou-me na carta uma história real. O garoto viaja com a mãe no eléctrico, carro aberto, instável, aos sacões. Por causa disso, a senhora, num brusco movimento do transporte, perdeu um sapato. Aflitos ambos, impossível recuperá-lo, o sapato a ficar cada vez mais distante quando, num gesto repentino e intencional, a mãe joga, ante o olhar atónito do filho, o outro sapato à linha, tentando, a golpe de braço, que fique perto do que perdera.
Pergunta o jovem, perplexo, porquê. «Porque a mim o sapato sobejante já não serve sem o perdido, que já não podemos encontrar, aqui vai este para que, juntos, sirvam a quem possa deles aproveitar-se».
Eis a vida numa moral simples. Li a carta até ao fim. Guardei-a junto às outras coisas que nesta vida junto, e que tanta gente não saberia sequer aproveitar.
terça-feira, 1 de abril de 2008
O troco
A probabilidade de um taxista apanhar em Lisboa duas vezes o mesmo passageiro no mesmo local pelas onze da noite é pequena, mas existe. A eventualidade de o passageiro dizer o nome da rua para onde vai e o taxista lembrar-se da rua com a qual ela faz cruzamento já é menor; mas aconteceu hoje tudo isso com o taxista que adorava a Rádio Luna do Montijo, pela música clássica que passava, a quem hoje resta a Antena Dois.
Desta vez estava taciturno: pouco serviço, por causa do futebol, «o senhor não vê pois eu também não, mas o pessoal fica todo em casa, além disso esta maldita rádio agora deu em ser só conversa». Pois era, «uma chatice», comentei para lhe fazer companhia. Depois disse-me que tinha ouvido no concerto para jovens o Mendelsohn, que não conhecia. «É o da marcha nupcial», disse-lhe, para não ficar calado. «Há outra do Wagner», ainda quis dizer, mas tinha-se instalado entretanto um silêncio de chumbo. A probabilidade de um taxista e seu passageiro irem sorumbáticamente calados essa é muito maior. Cheguei a casa. «Pague-se de sete», disse-lhe eu e «até qualquer dia» ouvi como se a dizer-me «e guarde o troco».