Ter ido a Vila Franca de Xira por razões de serviço deu oportunidade de visitar o Museu do Neo-Realismo. A arquitectura do edifício é notável, a amabilidade de quem nos recebe cativante, a sobriedade bela do modo de expôr uma arte dolorosa vinca a alma do visitante.
Talvez o meu ser ruminante me tenha feito notar que está ali o Vergílio Ferreira, com o Vagão J em destaque e o livro de viragem, o Mudança, obras do antes de o autor da Aparição entrar na desbunda vociferante contra os «neo-realeiros» que, se o trataram mal, tiveram também muita paciência para o aturar.
Cultura militante, numa luta intestina entre conteúdos e forma, atinge o seu momento mais agónico quando o desconhecido António Vale na Vértice entra na liça marcando a agenda com um artigo intitulado «Cinco Notas sobre Forma e Conteúdo». Bombo da festa Fernando Lopes-Graça. O nome do crítico escondia o seu clandestino autor, Álvaro Cunhal, cujos desenhos no cárcere ali estão.
Lembrei-me disso, como quem se lembra de um pequeno incidente numa história de família.
«Olha o Papiniano Carlos», disseram gaiatamente a meu lado, ao surgir a fotografia. «Nunca mais se falou nele». «Pois não», respondi, em nome dos vivos, dos mortos, dos lembrados e dos esquecidos, enquanto reparava naquela capa para o Carlos Oliveira, cuja escrita é a invulgaridade feita substância, o dito transformado em modo de dizer.