Na minha geração o marxismo era a Bíblia. De um dos meus colegas dizia-se que tinha deixado o Das Kapital no seu veloz Porsche, onde a PIDE o apreendera. A esmagadora maioria ia então para a Faculdade a pé. Nessa figuração absurda de um dos dos livros que revolucionou o mundo estar perdido, por displicência, num excepcional automóvel de um abastado estudante, estava contida a semente da contradição do que viríamos a ser quando adultos. A burguesia vive destes insólitos, frutos da crise de crescimento do que são, afinal, os seus filhos pródigos. Mas, enfim, penso que nem ele, patrício, que nos tolerava, nem nós, plebeus, que o desprezávamos, tínhamos lido esse livro monumental, livro publicado que era parte de um livro escrito, livro escrito que era parte de um livro pensado, uma infinita escrita surgida no moto continuum de uma forforescente mente genial.
Karl Marx, em Londres, indissociavemente com Friederich Engels foi um dos mais potentes pensadores de todos os séculos. Escreveu uma crítica à economia política, ao papel redutor do economicismo, em revolta aberta contra a leitura que o bolchevismo faria de si.
Revi isso tudo agora, porque um taxista amável me avisou que havia problemas com o trânsito por causa do enterro de um escritor. Não era enterro mas trasladação, que é uma forma de exumar nas consciência o que o esquecimento sepultou. Mas era escritor, Jorge de Sena. Este seu estudo sobre Marx descobri-o ao ter lido o que escreveu sobre Maquiavel, o genial florentino. Estão os dois estudos num livro da Cotovia, de má tipografia, com as linhas a emaranharem-se para poupar papel. Comprei-o outro dia.
A primeira edição de O Capital, alemã, tem 780 páginas, dedicadas ao processo de produção do capital. Falecido o autor, em 1883, Engels compilou-lhe, nesse ano, o segundo livro, de 500 páginas, sobre o processo de circulação do capital e no ano seguinte as 870 páginas do livro sobre o processo de produção capitalista. Caberia a Karl Kautsky, o renegado Kautsky segundo Lénine, completar a obra em três volumes do que seria um Livro IV, com 480, 380, e 600 páginas. «A metro cúbico de papel» dizia Marx numa carta a Engels, porque é assim que os alemães gostam.
Doutorado em filosofia pela Universidade de Iena, com uma tese sobre a filosofia da Natureza em Demócrito e Epicuro, Marx viveu em Trier. Visitei-lhe aí a casa sombria e inóspita. Revisitei-no no Museu Britânico este Verão, para onde se mudou em 1848. Nesse ano Engels escrevera o Manifesto Comunista. «Proletários de todos os países, uni-vos!». O livro tornava-se o motor da História.