quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A cambada de Corgos, de Carlos de Oliveira


Capula vai trair os camaradas de latrocínio. Pouco a pouco «à medida que se fora habituando à ideia de trair os companheiros, invadira-o uma súbita serenidade. Até à frieza completa de agora». É uma narrativa forte, em que a alma se arrepanha pela garra da leitura, chove desapiedadamente na história e no interior de quem lê, uma noite de sangue e de lamaçal, de olhos «cheios do luar pasmoso», de vento, de Natureza e pântano, que «nem chega a ser traição aquilo, é o destino». E, no entanto, um destino que convém às minudências humanas, pequenas misérias de ambição, venalidades pela glória, maldades por vingança. Cosme Sapo que intriga, o Padre Silva, pressuroso, serviçal no púlpito, fugidio porque «ninguém sabe as razões porque padre Silva faz qualquer coisa, nem ele próprio, mas está do lado do Cosme Sapo e é o que importa», todos ali estão, até os amores de Fernando e as ânsias de Hermengarda.
Condenados à grilheta o Leandro, o Venâncio e o Troncho, ladrões do alheio por nada terem de seu, a tristeza que é raiva contra toda a gente, e o povoléu, minguado de meios, em que «ninguém sabe o que deve e o que é seu». Traídos uns pela delação outros pela fatalidade do momento e da origem.
Estou aqui precisamente: Capula trai, compra junto do Administrador a impunidade, mas morre, expiando com a vida a venda dos outros que entrega sem coração, para se livrar «do peso, da solidão, da angústia, que esmagavam a sua vida». Estou pois no momento em que, presa a quadrilha, volta o sossego e o prestígio ao doutor Carmo, o Administrador. Talvez Presidente de Câmara, quem sabe se Governador Civil eis uma carreira que assim se reforça e soergue nas alturas do pequeno mando do incógnito lugar. É a página 206. Triunfante sobre Cosme Sapo, é o momento em que «a corja começava a saltar para o outro lado, à procura da boa sombra». Soberbo, Carmo sente subir-lhe o desprezo pela «cambada de Corgos». Perpetua-se o poder à força da vitória sobre a quadrilha. É a Alcateia de Carlos de Oliveira. O livro que ele negou. Um excelente livro.