Há na escrita de Dulce Maria Cardoso uma toada, como se uma ladainha feita de murmúrios antigos, vindos de um tempo interior, intemporal. Feita de frases curtas, algumas com a inocência infantil de serem um modo de escrever tal qual se diz, é uma escrita única na sonoridade, assim a reconheceria quem a visse escrita numa pauta musical em clave de sol.
Reconheço-a, pois, neste seu último romance que me chegou hoje pela manhã e hoje mesmo pela noite comecei a ler.
É difícil ler-se um livro de quem se aprecia a escrita. Neste caso desmesuradamente difícil. «Como é que se pensa uma ideia» pensa Alice cuja ideia no momento em que abro o livro é apenas encontrar uma prenda inesquecível para um marido que há muito a havia esquecido.
Foi assim que, leitor fiel, parti para a leitura e estou na página 56, receoso de que um qualquer momento dessa narrativa a autora falhe, como um cristal que se estilhace porque «não há nada mais imperdoável do que os erros estéticos. Além de incuráveis são contagiosos» e ela não pode errar.
Sigo pelas páginas, como se pelas linhas fora. Passei já pela Clara, substancialmente verdadeira no desejo mesmo quando diferente no acto de desejar, pelo Mc9 tão virtual como possível e um dia deixar-se-á conhecer para além do seu remorso, pela nudez de Sofia, tão apostável como disponível e magnífica. No meio de tudo isso vivi já a dor subrogada pela morte de uma princesa, porque não tem de ser nossa a causa da nossa dor. Vou continuar. Parei agora para vir dizer que estou a ler. Num momento ritual dei uma furtiva olhadela a uma das páginas do fim: «eu acredito que só deveríamos experimentar a juventude se nunca nos fosse tirada», disse Afonso. Talvez tenha melhorado como ser ao longo do romance. No momento em que o leio tem uns horríveis sessenta anos. Odeio-o e «ninguém consegue odiar sem esforço. O ódio exige mais conhecimento, mais prática e mais rotinas do que o amor». Até já.