Literatura pícara no sentido próprio do termo. Quem é o pícaro di-lo o prefaciador Ricardo de Saavedra.
Personagem «de baixa extracção social, vagabundo, burlão, farsante e um pouco ridículo, servidor de vários amos e ofícios», «o seu objectivo é subsistir», «é o anti-herói, comprometido em alimentar a sátira social e a ironia», «autónomo, individualista, ardiloso, despreza as leis do Estado e apenas tem em vista os seus somíticos interesses», «mistura de estóico e de cínico».
São assim os contos de José Manuel Couto Viana., no livro Que é que tenho Maria Arnalda?, a que esta manhã voltei para mais umas folhas lidas.
Abre com o provocador título «canta puta de merda!», que terminará, após acto de justiça social, de que não desdenharia o mais apiedado neo-realismo, em «toca, cabrão de merda!», segue, pé cá no vernáculo, pé lá na cinzelada arte, com o Nélinho «a apanhar às mãozadas, dos ferros da bicicleta, do boné do bagageiro, do avental, das nádegas e peito da sopeira, grossos bocados de pudim que metia à boca, com gozo e avidez, gritando: - É bom carago! É doce!».
É uma escrita por sobre a sordidez, a boçalidade trazida à estética, um mundo rude ainda que verdadeiro, como o do «Lopes da Conservatória» que no alcouce da «Rita Rebola», casa pública que «abria as portas à concupiscência, à lascívia, à luxúria, ao delírio da carne», segundo as confidências das raparigas «de vida quilhada» sobre as taras do clientes, só se excitava quando lhe metiam «um lápis no rabo» que, transformado o lugar dos seus encontros agora em novo antro, após mão decoradora, num «seralho oriental, com a profusão de reposteiros, tapetes felpudos, o fofo acetinado das almofadas, o espelho pendurado no texto sur un lit carré», esse mesmo «deu um uivo selvático quando, ao pedir o lápis das erecções, a Antónia lhe entregou uma caneta de tinta permanente Parker».
É clássica resistência à mudança, mesmo no trágico lupanar.