Comecei um novo livro. É uma narrativa ficcionada. Hesito em chamar-lhe novela, talvez me digam que não é um romance. Começa assim:
«Escrevera um livro sobre sentimentos com uma história ficcionada. Quando o leu, temendo-o autobiográfico, viu que era sobre a vida que poderia ter tido. Agora, sentado num cubículo da existência, imaginava um livro sobre ideias. O medo da ficção levava-o para a tentação da realidade. Havia nele algo de essencial que tinha, porém, deixado de existir.
«Escrevera um livro sobre sentimentos com uma história ficcionada. Quando o leu, temendo-o autobiográfico, viu que era sobre a vida que poderia ter tido. Agora, sentado num cubículo da existência, imaginava um livro sobre ideias. O medo da ficção levava-o para a tentação da realidade. Havia nele algo de essencial que tinha, porém, deixado de existir.
Todos os dias, pelas quatro da tarde, era a hora de visita. Esperou a sua vez meses a fio, certo que a existência o descobriria. Até ao momento derradeiro em que todos os outros regressavam taciturnos, ainda que consolados, do acto triste que é ser-se visitado, nunca desistiu de pensar que um dia isso também lhe sucederia, tornando-se possível. Foi então que Deus teve piedade. Transformou-lhe o mundo existente no mundo dos conceitos. A vida tornou-se uma ideia.
Naquele local, diga-se, Deus não era uma questão de crença, uma eventualidade da fé, sim um produto da gestação humana. Nascera prematuro e devia a vida à pouca medicina de um enfermeiro, que acorreu quando a mãe, a esvair-se, pedia que se trocasse a sua vida por aquela vida. Foi assim que ocorreu o facto de ter sobrevivido, ainda que sem saber hoje para quê.
Tinha cinquenta e oito anos, um rosto escalavrado os olhos recolhidos a esconderem o interior de uma vida incógnita. Nunca se lhe ouvira uma história sobre a família que era justo que tivesse tido, nem o relato daquela outra gente que afinal tivera, querendo-os até que o não quiseram.
Dizia que se chamava João de Deus. Quando ali dera entrada, vindo de uma esquina que ajudara a conspurcar com a sua miséria, tornando-a tão repelente como o desinteresse dos que se agoniavam consigo, não trazia documentos nem queria dizer onde se poderiam encontrar. Iniciara-se aí o vazio que faz agora todos os outros sentirem-se uma excrescência na sua vida em nome do qual dizem nada terem a ver consigo.
Em vez de ter inventado uma biografia, fantasiou um corpo. Fez-se homem para poder ser Deus.
Como todos os deuses também ele tinha um Céu. A diferença é que dizia que o tinha perdido. Passava noites olhando, absorto, o firmamento, mesmo quando as nuvens lhe roubavam as estrelas.
Uma vez alguém divertido com humilhá-lo perguntou-lhe se no seu Céu havia anjos. Foi a primeira vez que, ao olhá-lo, a Humanidade de todos os demais se perguntou se não seria cego, a expressão imóvel, os olhos indiferentes. Era, porém, uma Humanidade pequena em número e escassa de subtilezas.
Naquele lugar, a Humanidade era o nome de uma ala das enfermarias onde se arrecadavam os mais mansos, que podiam passear a sua indiferença pelos corredores desertos do antigo convento, à espera de alguma coisa que tivessem oportunidade de evitar.
Era um local de indivíduos que tinham deixado de ser pessoas. Conheciam-se pelo número da cama, antecedido pela letra da camarata. Os números mais altos eram os dos mais velhos, porque ali a lotação era contada e quando se chegava a um percebia-se que não podia haver zero.
Havia noites em que o silêncio fazia medo, dias em que a algazarra dava vontade de gritar. Uma dia um deles suicidou-se e por umas semanas a Humanidade ficou triste só porque faltava um número e ninguém sabia quem o substituiria para que o zero não surgisse e assim o horror do vazio.
Talvez tivesse sido o oblíquo do sol e o reflexo da sua luz num instante do imenso vitral. O arco-íris, soma refractada de uma luz branca que é calor, projectava-se, inevitável, na parede em frente do refeitório, onde as bocas ruminantes mesmo até as desdentadas almoçavam sopa de couves tristes e uns peixes em escabeche que só um mar ignoto e ressequido de salinidade poderia ter albergado, mumificando-os para os tornar de vida em alimento rude. E Deus sorriu, uivando como um cão.
Naquele dia começou esta história. Aquele sorriso feito de animalidade e assim uma ternura feita só de carinho sem mais razão, momento inaugural da felicidade entre os homens, era a devolução da paz que, como um fogo primitivo, aos homens tivesse sido roubado.
Alumiando-se pelas noites de eucaristia pagã, palmilhando os corredores e seu labirinto, enclavinhando nas mãos tochas fumegantes, velas cuja luminosidade bruxuleava mesmo no segundo em que, incertas, quase se lhes fenecia o sopro de luz, indecisas acendalhas, havia homens que saíam de lugares desconhecidos caminhando errantes para parte nenhuma, celebrando a comunhão da substância num corpo sacrificado. Um pacto de silêncio, as bocas contidas, um crime feito expiação de todos os outros crimes por expiar.
Agora, porém, contagiados pelo riso, como crianças para quem a irrequietude é contentamento, agitando no interior dos seus corpos incumpridos o rugir da existência, vogavam pela terra da ilusão, mãe da arte de marear.
João de Deus contou-lhes então uma história de um homem que era marinheiro e encontrou Cristo, filho de pescador.
Tinha sido tudo numa praia, praia como todas as praias arenosas, ainda que sem banhistas, praia de gaivotas sonolentas e um mar feito só rebentação e rochas descarnadas, em que tudo acontece. Naquele dia era Inverno. A Natureza proporcionava-se, fêmea.
Penso que o Cristo já não existe e a praia talvez já nem esteja assim. Ficou, porém uma ideia, precisamente a génese deste livro de ideias de quem receou um livro sobre sentimentos. Mesmo uma história fictícia de sentimentos reais».