Lembrei-me esta tarde que quando escrevi o texto de apresentação de uma nova edição de O Príncipe, de Maquiavel, que a Presença fez traduzir a partir directamente do italiano, deixei ali este excerto: «Descobri que para ler este pequeno livro e entender a complexidade que se esconde por detrás da sua vulgar linguagem importaria conhecer o seu autor, retirá-lo do imaginário colectivo, que ora o transformou numa espécie de cortesão alcoviteiro de tiranos, com eles partilhando os arminhos do poder, ora em republicano desprezado pela República, amigo do povo e dele seu discreto defensor, e ir buscá-lo ao momento de exílio, «res perdita», sofrido o desemprego, sujeito à prisão e à tortura, o dia gasto em convívio com gente boçal, a noite esgotada em fantasias delirantes em companhia dos Antigos, a dura modéstia do quotidiano e a ânsia de obter «qualche cose» dos de ‘Medici ou do Papa, um de ‘Medici também , algo que lhe devolvesse o sentido de utilidade e algum rendimento, como nos tempos idos em que era o Secretário da Segunda Chancelaria da cidade de Florença. Filho de advogado literato e por isso pobre, Nicolau Maquiavel, cultor das letras, pobre morreu também. Legou-nos, inédita, uma obra que é um sonho fantasioso de grandeza, tal como o estranho sonho que terá tido, segundo consta, antes de morrer».
Tinha então cinquenta e oito anos, a idade com que ele morreu. Neste dia simbólico da morte e da ressureição, dou graças a Deus por ter sobrevivido.