Consegui, enfim, acabá-lo hoje. Arrastei a leitura, porque vou intrometendo outros. Um deles foi a "Promessa", que foi também desta safra neo-realista e mantido inédito. Falo do "Vagão J".
Não se resume um livro numa crítica, nem eu sou crítico do que seja, apenas um leitor que gostaria que houvesse mais leitores para os livros que leio e gosto.
Depois de o ter escrito, Vergílio Ferreira abandonaria os caminhos dessa arte social e politicamente comprometida que é aqui o sopro criador destas páginas gritadas, na qual não havia outra estética que a da militância pelos «humilhados e ofendidos», outro tema que não fosse o da «luta pelo pão e pela paz».
Claro que se daria mal com todos eles e terminaria bilioso, com a tábua nos joelhos onde, forçado da escrita magnífica que o seu admirável ser gerava, se esgotava em palavras findas as aulas no Liceu Camões, a chamar-lhes «neo-realeiros» e outras imprecações que tais.
Mas não só com os intelectuais de serviço se incompatibilizaria, mas com aqueles que deles se julgavam serventuários e combatentes, porque - como confessa no texto de apresentação que escreveu em 1971 para esta obra, que começaria em Faro em Maio de 1943 e terminaria em Melo no ano seguinte - «aproximando-me eu de um proletário com boas intenções de simpatia e solidariedade, logo ele me rosnou, desconfiado da confraternização, ameaçando-me de navalha, para cortar rente o diálogo».
Uma coisa é certa: "Vagão J" mostra em que medida quem ali está, a gerar aquela escrita, vai à dimensão mais densa do homem aque aquela que ele o forma como animal social, o modela como cidadão, o confina como personagem histórica na luta de classes.
É a história dos Borralhos e do seu termo e do crime que tem de ser cometido antes de eles o cometerem, um crime cujo motivo é o ódio a todos exigir o sangue de um qualquer.
História de inquietação feita vagabundagem, de rancor feito tristeza, de pobreza tornada em raiva, há por ali também o professor, inevitável como surgiria na "Aparição", menos a tragédia existencial, «que se enganou na classe onde foi bater, por haver um pouco de consciência onde se não via que fosse precisa». E o António que se torna seminarista «para eu lhe contar um pouco o que é já da minha história» e eis a "Manhã Submersa" anunciada.
É um livro notável: «o espírito escapa-se como enguia ao suborno da matéria e daqui nascem problemas complexos». Como toda a sua obra. Assim eu viva para a ler toda, tão devagar como ela merece e exige.