sábado, 25 de junho de 2011

Averbamento

A poesia é o território da possível invulgaridade, embora a invulgaridade seja invulgar na poesia. Paulo da Costa Domingos destaca-se com o seu "Averbamento", publicado pela & etc em Maio deste ano.
É um livro que ele próprio compôs, amorosamente, porque é preciso amar os livros, e ele ama-os, para que o próprio escritor dê forma gráfica às suas palavras. Fê-lo através do que poderia ser um velho caderno encadernado, pautado, em papel azul em que até um certo momento da poética, carrila, em paralelo, um ensaio que é poesia filosófica sobre a condição humana. Aquém de um manifesto, pois falta-lhe a proclamação, o poeta encontra-se, como nós os encontramos, sem o saber porém dizer assim, com «uns tipos simpáticos que se põem assim como que de lado, hieroglificamente a assistir aos espectáculo do espectáculo dos sacrifícios, e bolsam com a bolsa cheia de conjecturas e transversalidades para a benemerência do raquítico pensamento nacional». E o filósofo constata quanto «ressonamos, assim, no sono de uma outra antiga razão. À janela da falta de reconhecimento miramos a parada da aniquilação do livre arbítrio e do eu na clausura concentracionária, numa sobreposse alienante afogada em mentiras».
É um formidável livro, denso enquanto pequeno, sobre «o váculo do zapping de carácter».
Encontrei-o hoje, a ele autor na Rua da Anchieta. Tímido encontrou-me de uma sacola, escondido o seu próprio livro, como se houvesse pudor em vendê-lo. Trouxe-o para escrever sobre ele. Li-o demoradamente para isso. Terei de o ler de novo. Uma vez mais e tantas outras. Cada frase, por vezes cada palavra um mundo: «o jornalixo» por exemplo, o de «as mortes ali penduradas todo o dia, presas ao quiosque por molas de orelha com espantos escarrados no rodapé».

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Ladainha de futuro

Sente-se de Almada Negreiros a toada heróica, o ritmo do rufar do tambor; de Pessoa aquele volante marítimo dentro de mim que é destino e viagem, de Botto quase a confidência exilada.
É poesia militante, e o nome do poema o diz: "Manifesto".
É clamor. Necessário. Actual. Absolutamente nosso. Vindo do sul.
Fernando Cabrita surpreende, mesmo quando assume a persona alheia para a gramática do seu poema.
«Fim aos irritos a dar-se ares de imprescindíveis», grita!. «Um grito é sempre um grito».
Parabéns ao poeta, os punhos cerrados, a alma irada, enfrentando o prosaico Portugal com a melhor Poesia portuguesa.

domingo, 12 de junho de 2011

O Profeta de Portugal

Toda a Literatura está aberta à hermenêutica. Muitas das entrevistas a escritores são na base da reconstituição do sentido, do significado, do propósito das alusões, até do nome das personagens. Na Literatura profética isto amplifica-se, por ser essa a sua natureza e a intenção de quem a produz. É o caso das trovas do "sapateiro de correia" Gonçalo Annes, o Bandarra. Encontrei precisamente em Trancoso uma edição de 2001 - e tantas outras lhe preexistiram - com notas e texto de apresentação de Fernando Santos Costa. Citando Fernando Pessoa quando afirma que é ele o verdadeiro patrono do nosso País, o compilador lembra que foi o seu retrato o que foi afixado quando da aclamação de Dom João IV. Julgado em 1541 pelos torcionários do Santo Ofício da Inquisição, em 1665 ainda era proclamado édito a excomungar quantos lessem a sua obra. Acusado de ser judeu pelos do Palácio de Estaus, livrou-se por pouco da fogueira, mas não do humilhante desfilo de sambenito vestido e vela na mão. Com este livro percebi que a história do anti-judaísmo está ainda por escrever. Com Dom Afonso IV os judeus em Portugal - que se conheceriam como a "gente de nação" - estavam ainda obrigados a usar uma estrela amarela no chapéu. Adolfo Hitler apenas lhe mudou o lugar de afixação.