Começara a lê-lo na Biblioteca Pública Municipal do Porto, mas não conseguia concentrar-me. Não pela complexidade da escrita, mas pela densidade do sentimento que induz, a profundidade de pensamentos a que nos conduzem as palavras. Dispersei-me, voltei atrás. Requisitei-o, enfim. Trouxe-o comigo em busca do tempo e do lugar. No dia 19 terei de o devolver. Lá estarei.
Comprei-o, entretanto, já não na edição primitiva da Bertrand, sim, na reedição da Quetzal, agora publicada. Não pela posse mas para o não perder, porque os livros hoje circulam entre os expositores das livrarias e as guilhotinas dos editores, reciclando o que tenha pouca venda, para poder sublinhar a frase, o trecho, toda a página, anotando, numa osmose entre o leitor e o lido o escritor e o que deixou escrito.
Comecei a lê-lo ontem à noite ainda, talvez na melhor hora, em que o silêncio amigo nos protege na esfera íntima do recolhimento, o corpo fatigado, os sentidos, enfim, tranquilizados. Madrugada, já.
É uma carta, escrita a partir de Évora, lugar simbólico do seu professorado, a cidade que «ignora a exactidão do presente, conhece apenas o alarme da memória», cosmos de onde surgiu o marco miliário da sua escrita, o percurso iniciado com a Aparição.
Uma carta que faz nascer vontade de escrever cartas, todas as cartas que digam tudo quanto há para dizer a pessoas a quem nunca o dissemos, a quem nunca escrevemos, àqueles que há tanto tempo nos escreveram. Uma Carta ao Futuro.
Regressei agora ao mesmo lugar, este sofá junto à janela de onde contemplo a frondosa árvore que a iluminação pública incendeia, lugar de vigília, zumbindo, autómatos, os automóveis e seus destinos de monotonia mecânica. Aqui estou, Vergílio Ferreira. Retomo a leitura. «Tenho apenas esta vida para viver, e seria uma traição que eu faltasse à sua entrevista - essa entrevista combinada desde toda a eternidade», dizes, e como eu te compreendo na transitoriedade das coisas, na eternidade da existência.