Ganhei o hábito de escrever sobre os livros que estou a ler pouco tempo depois de ter iniciado a leitura, assim como pouco antes de a ter concluído. Não sei qual a razão mas na vida nem tudo tem de ter uma explicação.
Guiado pela inflamada biografia que dele escreveu Stefan Zweig, iniciei a obra de Fiódor Dostoiewski com o seu primeiro livro "Gente Pobre" ou "Pobre Gente" como se deu título em algumas traduções.
Leio na versão da Editorial Presença, por ter sido traduzido directamente do russo por Nina Guerra e Filipe Guerra.
Estava prevenido para duas circunstâncias que a leitura confirma nesta breve e aparentemente simples obra.
Primeiro, que tal como na monótona estepe se acentua qualquer saliência desconforme com a chã planície, também aqui, depois de páginas de superficial vulgaridade, porque a vida dos quase sem nada é uma vida com muito pouco, há a inesperada grandiloquência dos momentos em que o leitor sente a visitação de um sentir que o agride na cicatriz do já dorido. E para isso é preciso a paciência de quem lê, o saber esperar que a beleza irrompa, tal como na Natureza do longo inverno que irrompa a primeira flor primaveril. Uma beleza ferida, porque não há gente feliz nem os que, na abundância do ter, poderiam estar melhor e por isso bem.
É talvez a segunda faceta que caracteriza, porém, melhor este modo de escrever, que já se pressentia aos vinte e quatro anos da vida do autor e que, segundo aqueles que a conhecem, lhe assinalar a peculiaridade de toda a obra: é a não linearidade das personagens, não só pelos seus labirintos interiores, mas pela mutação quase imperceptível que nos vão trazendo e que no final se resolve tornando-os os outros de si próprios.
No livro, na aparente individualidade de cada pessoa jogam-se, em constante dissonância, as gradações do Ser e até a sua negação, que vão gerando, como num jogo de sombras, cambiantes no cromatismo dos cinzentos em que a trama se desenvolve, a negritude da clausura sempre presente, em que só a memória traz a nitidez do soalheiro e da arborescência e seus odores. E, no entanto, no seu dar-se ao que não eram está a essência intrínseca do que, afinal, são.
No caso é uma história de duas profundas misérias, numa delas talvez mais patente a da vergonha pública ante a ostensiva pobreza e irremediável, noutra a do impudor de aceitar sabendo que se tira da quem dá porque há a necessidade feita inevitabilidade.
Temperada com o equívoco perverso de uma relação que começa como a de uma dedicação, sempre espistolar, serôdia, embora, de um modesto funcionário face a a uma quase púbere adolescente e se transmuta, na alma em botão daquela figurinha a quem, enfim, alguém se dedica, num enamoramento que lhe incendeia os sentidos, a narrativa vai correndo todos os cambiantes subterrâneos do rebaixamento, no final, ele, arrastando-se entre a vileza e a humilhação, alcoolizado, ela a partir, levada, a história interrompida com o cerimonial do adeus.
Calculo que terminará assim, pois ainda não acabei a leitura.
Há livros que gostaríamos de não terminar para poder interferir na vida das personagens e dar-lhe um final feliz.Como na nossa vida, vivendo eternamente, o Amor até ao ómega de um alfa amoroso que nos deu o ser.