Estou quase a acabar de ler Os Últimos Dias de Pequim de Pierre Loti. Leio-o na edição da Lello, não a de 1990 sim numa publicada sem data, num exemplar que a alguém pertenceu em 1942.
Livro que relata uma expedição militar do autor à China, enquanto comandante de Marinha, no quadro de uma força militar internacional que invadiu aquele País em nome do combate à guerra dos "boxers", este é uma travessia pelos territórios do sublime e do sórdido, acumula-se por páginas que doem ao ler pelo relato descarnado da violência indescritível e bestial e páginas que são devaneio para a sensibilidade ao descreverem, com minúcia e sensibilidade, a milenária China e os seus imutáveis habitantes.
Traduzido pelo seareiro Raúl Proença, é um excelente exemplo daquela Literatura de viagens em que nos sentimentos passageiros, ademais pelos confins viciantes do Oriente.
Tudo começa, sob um céu cheio de estrelas, no mar, a 24 de Setembro de 1900, o navio a ter feito cinco mil léguas, «quase sem respirar, dando constantemente, por minuto, quarenta e oito voltas da sua hélice». Invisíveis as montanhas da Mongólia aguardam-no como limite.
Prepare-se quem ler. Irá cruzar-se com cenas que lhe marcarão a alma, uma narrativa circular, a terminar quando aqueles por causa de cuja ferocidade contra os estrangeiros cristãos foi levada a cabo aquela expedição militar, agora, submissos, numa aparente docilidade, os servem, sobretudo aos franceses.
«Sob a nuvem de carvão de pedra, começam a delinear-se coisas extra-longínquas, só perceptíveis a olhos de marinheiros», diz Loti a anunciar o horizonte. Na amurada, quem lê, afina a vista, preparando-se para saber surpreender sem que a surpresa o atinja primeiro.
O cenário é o de uma guerra de ocupação já sem tiros. A barbárie tinha passado já, carnívora, estorpiando, violando, profanando.
A 3 de Outubro fundeia-se na praia de Ning-Hai: «cossacos, austríacos, alemães, midships ingleses ao lado dos nossos marujos amados; soldadinhos do Japão, espantosos de correcção no seu porte militar, com os seus novos fardamentos à europeia; damas louras, da Cruz Vermelha da Rússia, azafamadas, a desenfardar material de ambulâncias». A mesma Alemanha que em 1870 estivera em conflito aberto com a França une-se-lhe. A política é sem porquê.
Cumprida a missão, Loti regressará em Maio do ano seguinte. Na dedicatória ao Almirante lembra quanto viu mas não esquece os seus homens que, acantonados nos navios, viveram entre a fornalha e a clausura. Convivera com a eternidade, com a magnificência, com a mais rasca imundície. É esta a grandeza da vida para quem a vive na totalidade.