Prometi que viria aqui falar de Aparição o livro que li há pouco julgando que já o tinha lido na adolescência e que muitos jovens são forçados a ler para, pouco compreendendo, o detestarem, em nome da fantasia pedagógica de que eles são, enquanto massa escolar, pela sensibilidade, aquilo que se pressupõe para um tal livro.
Ante ele ressalta de imediato a natureza auto-biográfica da narrativa, a de um Vergílio Ferreira professor em Évora, tal como Alberto Soares, a personagem principal e narrador da obra, escrevendo-a, goticular, em noite de trevas e luar, granítica, como memória de si e do que foi a sua deambulação, recordação da casa paterna, agora envolta na dimensão trágica do luto.
Com o professorado a narrativa traz-nos a missão inconclusa e repetida, a reclusão interior, forma de exílio em terra estrangeira, à mercê de sentimentos e ressentimentos, da minudência do meio, a impossibilidade de afirmar a própria grandeza e, no fim, a sísifica impossibilidade e o retorno.
Toda a história é uma narrativa humilhada de diminuição, numa cidade onde «qualquer iniciativa cultural é logo abafada de desprezo e banha», mas nenhuma surge.
É a perseguição da aspereza do lugar, «o corpo sovado de insónia», «os olhos ardidos de espertina», a «alucinação de luz», «onde carroças estremecem com um estrépito de ferragens», «Évora mortuária, encruzilhada de raças, ossuários dos séculos e dos sonhos dos homens».
É essa inviabilidade de compatibilizar o ser e o estar que acaba por lhe contaminar a existência, confinando-o ao sedentarismo do seu canto de escritor, alheando-se progressivamente de tudo o que conhece, de modo cada vez mais profundamente e por isso menos extensamente.Começara com Mudança essa incompreendida e solitária caminhada.
E, no entanto, há vida, erotismo como ofensa à contenção, acicate e castigo, Madame «abundante senhora, loura por antiguidade (...), ousada e astuciosa por direito de mamã», a dominar a cena com a mestria da arte do rebaixamento, sadismo feito "salon" e "boudoir" e Sofia, secreta, «vestido branco, colado como borracha, e um corpo intenso e maleável», o «boleado das curvas», «a cinta fechada disparava-lhe os seios, uma luz inquieta iluminava-lhe os olhos», Sofia que o trafica, negando-se-lhe, depois de o levar e ele obcecado, esfaimado «no limite dos seus seios fortes, das suas ancas volumosas e solenes como uma noite germinadora» ao ponto explosivo do desejo, «presença inquietante, oblíqua de avisos», tudo territórios de negação a uma sensualidade que emana da Terra e por ela para os corpos que a habitam, para se lhe oferecer num acto de sublime desespero e paixão como um único beijo fossem todos os beijos da totalidade do corpo.
A isto mal escapa Ana, nela onde «havia a violência de um prosélito recente ou em crise», a «fúria silogística», o «desejo encarniçado de demonstrares», e em tudo isto se abre a magnífica clareira para Cristina e o seu nocturno de Chopin, imagem ímpar de evidência, afinal a única breve inocência a dar corpo à angustiosa questão da morte, essa «inverosimilhança» ante o nada mais haver na vida «do que beber até ao fim o vinho da iluminação e renascer outra vez», essa «fulguração sem princípio» e por isso ceifada à existência em inesperado instante.
Joga-se em toda a narrativa o problema central do Homem aquém, imensamente aquém do destino da Humanidade. E, no entanto, sempre a miséria dos humilhados, surge, em emergência dolorosa, cenário de um martirizado Alentejo, em Quaresma social permanente. Quem tem coração que dói não esquece a dor alheia, mesmo quando não arregimentado com soldados da salvação organizada pela Arte comprometida.
«Que sabe a fisiologia sobre os sonhos de um homem?», pergunta o narrador ante o Doutor Moura, na viagem fatídica que os conduz ao encontro com o Bailote, semeador bíblico de mão suplicante, inutilizada já para a única função que o agarrava à vida, enforcado pelo desprezo sem memória que dure no remorso dos outros, morte tão morte qual a do pai do próprio narrador, morte esta que persegue todas as memórias como lembrança e com ela a da velha casa, familiar, originária, local de retorno às origens, a ferocidade contida das partilhas que aflora como um perfume de ganância minifundiária.
Livro de um humanismo que não quer «apenas um bocado de pão, quer uma consciência e uma planitude», Aparição é o Homem e a Terra toda, incluindo o Céu e o Inferno que dela brota como esperança e medo.
Tanto poderia escrever sobre esta portentoso livro. Tanto.
Escrevo sobre o que se me vincou, desordenada, lacunarmente, por isso, inevitavelmente, sobre o que há nele de perdão. Perdão para o adolescente Carolino, «a viver uma inquietante separação de si, não sei se para um encontro lúcido consigo, se para uma união de loucura», a triunfar, porém, pela vitória adulta não do que em si era perplexidade atulambada mas potência e sexo e por isso com Ana, viril mesmo quando patético que seja, perdão para Tomás, mulher e sua ranchada de filhos, lavrador e com ele a virgindade sempre desflorada da Terra pela frutificação de si, nobreza de acto que suplanta os dourados da cultura, os engalanados dos livros, anseio de paz, de família, do afago de companhia, perdão para o que é simples mesmo rude, para o "Manuel Pateta", animal de carga alimentado a bebedeira, para todos, para tudo quanto é bronco e brejeiro mas afinal sincero e verdadeiro, lugares «onde a boa disposição tinha a sólida base de um estômago cumpridor».