Muitos médicos dão em escritores. O drama humano é o seu quotidiano, ou pode sê-lo se à profissão juntarem sensibilidade de alma para os que sofrem e para a vida de onde provêm. No caso de Fernando Namora a isso somou ter iniciado carreira pelo interior do País. A sua escrita traduz crises de existência, as contradições de classe que soube exprimir com sinceridade.
Ao reler Fernando Namora com os olhos de quem sabe, pela aura que em torno de si se criou, espera-se ver literatura crítica para com os poderosos, condoída pelos humildes. E terá alcançado essa posição em algumas das suas obras, não propriamente nesta, que escolhi como tema de crónica.
Lidos com os olhos actualizados, comparados com quanto foi escrito por muitos seus camaradas das letras, estes contos, editados em 1949, são manifestação integral de um homem que ainda não encontrou equilíbrio entre a vida coimbrã de onde proveio, misto de boémia e Arte, e as asperezas do mundo, sovado e iletrado, para o qual se lançou no exercício da sua clínica.
Oriundo de uma família de modestos recursos, natural da aldeia de Monsanto, Fernando Gonçalves Namora soube trazer para a Literatura, porque o reconhecia como seu, tal como Vergílio Ferreira, o vocabulário rural que faz com que, os mais snobes considerem esta escrita como “regionalista” e assim a tentem apoucar, como tentaram com gigantes como Camilo ou Aquilino Ribeiro.
Mas não é isso que importa, nem isso que o ultrapassa mesmo num mundo de hoje em que há cada vez mais que fale com menos palavras do dicionário. O interessante é a crueza, crueldade mesmo da sua verdade.
O médico que ele ali relata, que um leitor segue como sendo o próprio autor que pela ficção escrevesse a sua autobiografia, é um ser que assume amiúde facetas detestáveis. É o domínio do mando, o médico que «se sentia feliz por dispor dos receios ou das lamúrias dos camponeses», o dono da vida e dono da morte.
Autoridade e soberba, diga-se, que sabe quanto isso concita de desprezo, logo o do funcionário de justiça, por exemplo, para quem «nós médicos éramos uns porcalhões, uns tipos endurecidos. Gostávamos de remexer em imundícies», mas desprezo afinal também o dos que a sua prática médica não convencia, antes de não curar.
Mundo cão, mesmo o seu, profissional, é caldeirão de rancores, vilezas, intrigas, embora o que haja ao longo da narrativa, e dite estes sentimentos negativos, seja o pulsar errante de um jovem médico, inseguro ante a doença, presa fácil do meio hostil e que dá de si a pior face: «O médico – escreve – é, na aldeia, um ornamento público, como a igreja, o padre, o bosque de madeiras afamadas», pois «os camponeses vinham ao consultório para admirar a face imberbe do novo médico ou para concretizar desconfianças».
Reciprocando, a personagem dos Retalhos não se coíbe de dar voz, e uma vez mais supomos ser o autor que fala através dele, a um desprezo pelos naturais onde exerce a sua medicina. É o alentejano para quem «o homem do Norte é (…) o galego» porque «quando arribam os ranchos do Norte, já raros, chegam como inimigos», os alentejanos que «dão nabos às vacas, enjoam a hortaliça. Não têm flores, não têm nada de mimoso»; é o pai, de mulher a esvair-se na agonia de um cancro, enxotar os filhos «com a voz e com os pés, como se enxotasse cães»; as mulheres «glutonas da vida alheia», os camponeses «esses labregos atemorizados» ante os quais ele se sentia «feiticeiro medieval», o homem «bexigoso e amulatado», a «ladroeira dos ciganos», que «eram tão nojentos que causavam ânsias».
Não é fácil assim ler Fernando Namora. Primeiro, porque os seus livros caíram no esquecimento, mesmo este que deu um filme de Jorge Brum do Canto, depois porque, quem puder achar um, duvido que não se sinta com este modo, verdadeiro é certo, de viver a vida com todos os demais.
Trata-se, porém, importa sublinhar, de um grande escritor. Momentos há em que a forma de dizer o mostra em alto nível. Quem, de entre tanto vulgar hoje com livro impresso e fama fácil, escreveria: «O vento gania de saudade de outros lugares, molhava-se de chuva e tristeza, e tudo isso, prisão e desespero, escorria também da minha face».
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Texto publicado na coluna Ler em Português no jornal Mundo Português, um semanário dedicado à emigração.