Parece que a personagem principal, e que no livro conta a história, é de ficção, pois se chama Miguel. Mas percebe-se adiante que esse é parte do nome do próprio autor, Luís Miguel. Ganha-se, então, a percepção de que aquilo ali contado pode ter sido a sua vida, mas estou em crer, tudo lido, que foi, afinal, sem máscaras, exactamente a sua vida. Mais: a vida de todos os outros, os da família de sangue e os amigos, as mulheres que com ele viveram e com ele estiveram.
No final de um enredo, de monólogo escorrente, repetidos por vezes, como se obsessivamente, os mesmos episódios, fica, coração apertado, uma dúvida: teria sido legítimo contar tudo aquilo? Não direi pelo modo de contar, perpassado de dor e de contrição, sim, pelo que ali se revela de todos os demais, as suas misérias, o que os diminui, intimidades e sordidez não excluídas, descontada a grandeza com que pela narrativa se elevam, trazido à tona por um esbracejar aflitivo em que o escritor se debate para exorcizar os seus fantasmas e os seus pesadelos.
Mãe, promete-me que lês é um livro sobre o qual, lido em dois fôlegos, não tenho opinião e talvez não tenha de a ter.
Num mundo de voyeurismo disseminado - de outro modo inexistiram redes sociais - está ali pasto para os esfomeados por vidas alheias, essa sorte de canibalismo mental dos que por essa forma saciam a pança das suas vazias existências; num mundo em que os vultos mais divulgados da escrita, já sem tema, tudo dito, se destralham, esfrangalhando na praça pública, em livros e crónicas, as tripas suas e as dos seus, a obra já tem antecedentes.
Ficam-me apenas duas perguntas.
A primeira, o "porquê", não naquela variante do "porque escreveste isto, Luís Miguel", pois em algum momento desta sua iniciativa o autor terá tentado explicar-se, como se terá já explicado sobre obra antecedente - que não li - centrada na pessoa de seu pai, sim naquele perspectiva do "para quê", a variante utilitária da mesma pergunta. A essa tento responder: para que ficássemos menos sozinhos nas nossas angústias, mais confortados com o que de feio e mau tenhamos a ensombrar as nossas vidas. Se é isso, seguramente, haverá tantos que ali se reconhecem e se absolvem, corrido o purgatório.
Resta a segunda pergunta e, afinal, a que creio ser a fundamental pergunta: "mas não haveria como?". Esta questão tem como resposta o tanto que em Literatura já se escreveu com subtileza, sobre vidas horrendas e momentos sublimes, do espectro do amor à morte, do construir à depredação. tornando o escritor em Arte o que é afinal a sua própria pessoa, deixando ao leitor a possibilidade de supor onde estava na ficção a realidade, na história alheia a sua autobiografia. Poderia ter sido assim, mas não o foi. Como cada vez mais já não é.
Leio, quase sempre, a sublinhar. Aqui sublinhei pouco, pois na imensidão dos factos são isoladas as frases que contêm uma reflexão. Retenho uma: «Celebrar a vida com estrondo, celebrar o estranho caso que com ela temos». É isso, suponho, o que me fica desta leitura. Talvez já seja, sem que a queira ter tido, uma opinião.