domingo, 25 de junho de 2023

Ladislau Patrício: ironia e sal-de-azedas

 


Ladislau Patrício, médico, nascido na Guarda em 1883, falecendo em 1967, dedicou-se, para além da sua profissão, também à escrita, pois já houve e sempre haverá quem seja assim.

Nenhuma obra sua consta da base da Biblioteca Nacional, ali só um apontamento biográfico, editado em 2004, pela Câmara Municipal da cidade, da autoria de Helder Sequeira. Tem nome de rua em Lisboa, na zona do Lumiar, sendo natural do Porto e tendo vivido na terra dos guardenses.

Encontrei, em alfarrabista, um dos seus livros de crónicas e versos, publicado em 1927 pela entretanto extinta Livraria Rodrigues, Editores, com sede em Lisboa, na Rua do Ouro, com autógrafo de dedicatória ao seu colega «gentilíssimo espírito» Dr. Augusto d'Esaguy, ele também escritor e condecorado inclusivamente pelo Governo cubano e pelo português com a Torre e Espada. Intitula-se O Mundo das Pequenas Coisas.

A obra transpira, em três das suas novelas, bom humor, rica sem excesso quanto ao vocabulário, escorreita e sedutora no estilo irónico. Os versos, que compila na segunda parte das 157 páginas, talvez sejam menos conseguidos. Cunhado do poeta Augusto Gil, não conseguiu guindar-se à altura do autor de Avena Rústica, a quem Lisboa dedica um jardim, ali pela Graça. 

Há também, em jeito intimista, como excerto de memórias, um apontamento, escrito em 1908, sobre a festa local em homenagem a São João Baptista, de que ontem se comemorou o dia, e, sob o título Viagem Sentimental, a narrativa da intrusão sufocante de uma família no compartimento em que o autor fazia, supondo-se em sossego, uma viagem de comboio, grupo em que «o chefe do rancho era um homem nédio, sanguíneo, que rebocava uma senhora pesada (onde eu adivinhei a esposa) e mais duas raparigas e um garoto, de marinheiro, magrinho linfático e triste».

Mas é, sobretudo a História de proveito e Exemplo, que mais me atraiu, narrativa da prepotência e volubilidade de Anselmo, o farmacêutico local, dono de termómetro e barómetro e assim Senhor dos destinos dos que da meteorologia careciam tanto quanto da farmacopeia que aviava e manipulava, sujeito de aparente «preopinante vontade» mas que os ventos da História amoldariam. 

Local ermo aquele, onde «os dias sucedem-se no entanto, ronceiros, bocejados, entre labaredas do firmamento implacável, de bronze, e a aflição da Natureza calcinada e triste». 

E tudo sucede a 16 de Maio de 1906, precisamente, com a queda do ministério e a nomeação real de João Franco, a lançar alvoroço naquele coração apertado do boticário. «Agora é que se vai ver o que é governar às direitas», clama, porque os outros, os da República velha, «por pouco que não põem o país a saque!», «súcia de gatunos!»

Adivinha-se o devir da narrativa. Aos poucos, os aderentes, essa mão cheia de adesivos que se achegam ao que parece pingar de prebendas, aproximavam-se e teimavam eles em tornar Anselmo presidente da Câmara. E que o dito tinha créditos, porque já tivera do cargo o mando, e, tendo de enfrentar uma greve das leiteiras da terra, que recusavam a venda, opinou, hábil no chiste, que pior seria, se a greve «em vez de ser feita pelas vendeiras, fosse feita pelas próprias vacas».

Quanto ao messiânico João Franco parecia ungido de vantagens e sobretudo não se lhe encontrava o que seria um grave inconveniente, pois «era um homem rico, circunstância eminentemente favorável à precária resistência do Tesouro». Ademais, era valente: «Olha quem! Se lhe constar que a uma esquina está alguém com cacete à espera dele é quando lá passa mais depressa...»

E ei-lo, pois, franquista. Só que a política é mutante e o tempo passou. Quatro anos volveram rápidos.

Em suma, abreviando a história, chega um portador de Moimenta com a notícia. Revolução em Lisboa, mataram o rei, a capital do Tejo «num mar de sangue». 

Ora tudo isto trazia uma grave alteração de circunstâncias. Não por Lisboa estar «num mar de sangue», já que, naquela lógica de um só povo uma só nação «nós cá não temos nada com isso: é lá com eles!». Problema é que, já agora e indo ao osso da questão, «República ou Monarquia, que importa? O que é preciso é haver quem nos Governe». Ordem, pois, e mando! 

Só que, içada a 5 de Outubro, na Câmara local, o pavilhão revolucionário verde e rubro, Anselmo tem o coração pendente. O caos ajuda à hesitação. «Tinham-se efectuado capturas de funcionários e demissões; surgiam ali e aqui desacordos, antipatias, notas desafinadas no geral concerto; havia descontentes; principiava a falar-se vagamente de conspiradores», a somar a assaltos aos jornais monárquicos, perseguição aos bispos e ao demais clero. 

Convidado a dar apoio às incursões monárquicas de Paiva Couceiro, recusa dinheiro, cauteloso, nega-se a esconder pistolas, promete apenas ao anónimo emissário «estricnina e sal-de-azedas», aquele veneno, este um óleo branqueador. E apoio moral!

Tal nega é, aliás, indiferente, pois está-se na antecâmara do fim dos insurrectos. A projectada incursão «deu em droga» e, duas semanas depois, quando se anunciou na Vila a visita oficial do ministro do Interior, «em viagem de propaganda e apaziguamento», «Anselmo, já perfeitamente integrado no regime, proferiu um discurso de efeito no banquete na Câmara Municipal».

Dois lapsos, porém, actos falhados lhe chamaria Sigmund Freud, ensombrariam, porém, a verve do tribuno reconvertido e erudito. 

Aos brindes saudara «À sua, senhor ministro do Reino!» Mas, rápido na rectificação da gaffe, ei-lo que proclama que «bebia à saúde de Anselmo Ferreira Chifarote, livre-pensador!», ante o que, o Sequeira, personagem local, rematou mordazmente: «Parece que o estou a ver de lanterna e de opa na procissão do Senhor dos Passos...».

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Foto: Arquivo da Câmara Municipal da Guarda


Panait Istrati: o fogo de um coração ardido

 


Leio Panait Istratit. Recupero, com ele, o que tenho perdido por desatenção quanto à Literatura romena. Regressam vestígios de memória e surgem quantos, oriundos daquele país e acolhidos por Portugal, durante a 2ª Guerra, à sombra da paz deixaram notável contributo quanto à nossa Literatura portuguesa, como Leonor Buescu, no que se refere à escrita medieval e seu marido, Victor Buescu. E o apreço dos nossos estudiosos como João Bigotte Chorão por aquela escrita.

E o papel determinante de uma figura notável, que desempenhou em Portugal, durante a 2ª Guerra, funções oficiais de adido cultural do seu País, Mircea Eliade, a quem se devem estudos sobre Camões e Eça de Queiroz.

Animado por este encontro, reagrupo na estante, para leitura futura, o que tenho em livros de Virgil Gheorghiu, de que li muito pouco e esqueci muito do que li, e dou conta que, vergonhosamente, só tenho um livro de Eugène Ionesco. 

Vou em busca da poesia de Mihail Eminescu e deparo-me com uma edição bilingue, co-traduzido por Carlos Queiroz, esse precisamente, o poeta da Ode aos Vindouros, sobrinho de Ofélia Queiroz, com quem quase privei, como se viva fosse ainda, ao transcrever o manuscrito do romance de António Quadros que sexta-feira entrou na tipografia. Mundo circular este.

Cruzo-me, em outra estante, aqui por trás da secretária em que escrevo, com um outro poeta, Lucian Blaga, filósofo e escritor, que foi diplomata em Lisboa entre 1938 e 1939, e de quem foi pulicada, em edição revista, uma antologia poética, prefaciada por José Augusto Seabra. 

E um pouco ao lado, o jornal de prisão de Corneliu Zelea Codreanu, edição francesa, infelizmente muito descuidada, em que tentei entender a mística espiritual da Guarda de Ferro, esse momento trágico da História romena. E Emil Cioran, que comecei com uma biografia e hoje vejo ter uma edição de tal modo volumosa do que talvez sejam as obras completas, que duvido consiga vir a lê-la.

Leio, dizia, Panait Istrati num breve conto, Floárea, em edição da Inquérito, publicado em 1940, o papel amarelecido, algumas folhas a rasgarem-se. Mas leio, surpreendido pelo estilo, esse modo de relatar o insólito pela forma inesperada.

E quiseram as circunstâncias que encontrasse, numa antologia editada pela Portugália, sem data, mas publicada em primeira edição, a que tenho, em 1946, um outro conto seu, O Baragan

Breves ambos, este ainda mais, mas notáveis de densidade emotiva, de invulgaridade. 

Li-os e cotejo-os agora com o espesso volume das suas obras, editadas para já em um primeiro volume, no ano de  2006. Noto agora imperfeições na tradução mas nada disso apaga o vinco fundo na sensibilidade que me deixou o que li. 

Floárea é o texto inicial de uma obra sua, publicada em 1925, ano em que Istrati regressa à Roménia, seu País natal, depois de dez anos de ausência. É a apresentação dos haïdoucs, os lendários revoltados contra a ocupação turca, refugiados na floresta. O Baragan é um fragmento do romance que em francês, língua na qual Istrati escreveu, Les Chardons du Baragan [os cardos do Baragan], publicado originalmente em 1928.

O que dizer que traga a quem lê o sentimento que ficou do que li? 

Floárea Codrilor, mulher capitã dos häidoucs lança a sua história. «Filha das ervas», cuja «primeira paixão, ao abrir para a vida meus olhos, foi correr voluptuosamente de peito contra o vento», lado a lado com o garoto da aldeia, Groza, hoje «o terror entre os cobardes que fabricam leis», o que «esfolou vivo um homem da sua quadrilha», um traidor, Groza häidouc que havia sonhado sê-lo desde a infância.

História de liberdade  porque «certa gente gosta da flauta, como gosta do cão, para o trazer de coleira, como gosta do rouxinol, para o meter na gaiola, da flor para a arrancar do sítio onde Deus a fez nascer, e da liberdade para a mudar em escravidão». História de revolta contra os «senhores da abundância», quais ratos, contra a mesquinhez e a monotonia, «a hora estúpida aos domingos», contra «aqueles bons cristãos que abrandavam os mandamentos da lei de Deus possuindo e gozando, eles sós, a terra toda».

História delicada de enamoramento, de alma sensível e dorida, porque «a resistência sincera duma mulher não tem poder sobre os desejos dum homem vulgar. Ele não sabe onde acaba o embaraço de uma mulhezita e onde começa o desgosto profundo da feminina dignidade. Tudo é permitido à besta que possui a terra».

Já o Baragan é uma estepe no sudoeste da Roménia, onde a narrativa surge no dia de São Panteleimão, quando vem o vento moscal e a cegonha parte. 

Sente-se pela escrita mais do que as pessoas, a própria terra e com ela a Natureza, local desesperado, o Baragan solitário, onde «de um poço a outro há tempo para morrer de sede», e ali o homem pastor, e «sonho, pensamento, ascensão e barriga vazia: eis o que dá gravidade ao homem nascido no Baragan».

É neste cenário que surgem, figura central do relato, os cardos, terra onde não há senão cardos, «semente de má raça», tudo espinho e sementes, inútil, mas «quanto mais inútil, melhor sabe defender-se», e resiste, por isso, os cardos tornam-se maus, vergam-se, a haste curta, o vento galopando «sobre o império do cardo» e, enfim, quebra-se o caule, e ei-los, que «vêm sabe Deus donde e vão Deus sabe para onde».

Panait Istrati. Dele se disse que era chama, o coração ardido pelo incêndio de todas as heresias. 

domingo, 18 de junho de 2023

Robert Walser: a grandeza da insignificância

 


Reencontro Robert Walser, em tradução de Ricardo Gil Soeiro, que seleccionou alguns dos seus textos e os traduziu a partir das Sämliche Werke in Einzenausgaben [Todas as Obras em Edições Únicas].

Lei-o sempre sob o efeito da imagem da pungente imagem das pegadas da neve, a sua última caminhada até ao destino final, os seus retratos sempre em pose formal, cuidadosamente vestido ainda que com roupa já sovada pelo tempo, o guarda chuva escrupulosamente enrolado.

Walser, «escritor suíço de expressão alemã» viveu para a escrita, uma escrita peculiar, não de grandiloquências mas de insignificâncias, feita sobre a minúcia do quotidiano, sobre a «celebração do irrisório», como se diz no prefácio ao pequeno livro que a Assírio & Alvim editou. 

São pequeníssimos textos sobre diminutas circunstâncias, rematados sobre três apontamentos sobre o próprio autor. Em um deles, denominado Candidatura de Emprego, retrata-se em duas frases: «[...] sou um chinês, isto é, uma pessoa para quem tudo aquilo que é pequeno e modesto se afigura belo e adorável e terrível e medonho tudo aquilo que é grande e amplamente desafiador», «tenho uma mente lúcida, embora ela se recuse a aprender coisas em demasia, algo a que ela tem aversão».

Observações atentas à minudência da vida, é uma escrita também de surpreendentes qualificativos como quando escreve: «Durante uma chuva respeitável tudo fica molhado, exceptuando a água, com os rios que já não podem ficar molhados, pois já o estão», ou «o vento sopra e no vento esvoaçam todas as minhas preocupações, como pássaros tímidos».

Escrita mansa, por outro lado, sem tragédia, feita de inocência, mesmo quando vagamente triste, é um afago à sensibilidade àquelas que se defendem de não terem embrutecido.

Ao notar que «A cinza é a humildade, a insignificância e a própria inutilidade e, muito em especial, ela própria está impregnada da crença de que não serve para nada [...]. A cinza não tem carácter e está tão afastada da madeira como o desânimo do triunfo», Walser dá vida ao que parecia nada, assim como, ao coser um botão, nota, referindo-se-lhe, que «é apenas - ou pelo menos assim o aparentas - o propósito da tua própria vida, consagrando-te inteiramente ao silencioso cumprimento do dever», ou ainda, ao ver um velho prego enferrujado, de onde se pendurava um guarda-chuva igualmente velho e desgastado: «Ver como algo velho e amargurado se agarrava a outra coisa igualmente velha e amargurada, ver e observar como algo caduco pendia de outra coisa igualmente decrépita era como ver dois mendigos abraçando-se num deserto frio e desesperado, prontos para morrer a qualquer instante nos braços apertados um do outro».

São estes, os pequenos livros, que se tornam grandes obras.

Robert Walser nasceu em 1878 e morreu em 1956. Terminaria a vida num hospital psiquiátrico. Os 562 microgramas que escreveu, manuscritos microscópicos, são a imagem viva do infinitamente pequeno, o microcosmos em que se encerrou.