Epilético, gago, tímido, modesto funcionário, filho de pais pobres, um extraordinário escritor. Leio em Machado de Assis o conto O Espelho. Um das duas centenas de contos que escreveu. A narrativa traz como sub-título «Esboço de uma nova teoria da alma humana». A espécie «alma humana», dentro da categoria maior «alma» já fala por si. Mas é a afirmação de que cada criatura traz duas almas consigo que é a raiz da história: uma que olha de fora para dentro, outra, a exterior, a que olha de dentro para fora. Esta pode ser «um espírito, um fluído, um homem, muitos homens, um objecto, uma operação». Em Camões foi a Pátria portuguesa com a qual morreu, em César e Comwell o poder.
Irónico, Machado de Assis sabe, porém, que «há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade».
Para o narrador, um homem que, paradoxalmente - e em Assis abunda este modo de contrários conviventes - , se chama Jacobina, «a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem». O posto de alferes. «O alferes eliminou o homem».
Vivendo a angústia do aprisionamento de uma das duas almas pela outra mais velhaca, só o sono lhe dava alívio «não pela razão comum de ser irmão da morte» mas porque «o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava actuar a alma interior».
Um dia olhou-se ao espelho. Viu do rosto as linhas difusas, as «próprias feições derramadas e inacabadas».
Fardou-se, então, para deixar ao mundo o seu reino, ao ser a sua reintegração.
É um final triste, a história de um homem que regressa a si, impondo-se um exterior que o anula, um conto magnífico, uma lição dura de aprender.