A vida literária portuguesa, a vida política portuguesa, a vida portuguesa em geral, ou talvez melhor diga, a vida está pejada de pequenas zangas e melindres. Talvez seja isso mesmo que lhe confere intrinseca humanidade. Tudo menos a fantasia, a ilusão, a fábula.
Temos já santos em altares que bastem, rodeados de auréolas de virtudes, o País está carregado de estátuas de heróis sem manchas outras que as dos pombos.
Li ontem, por ter sido finalmente possível voltar a ler, as memórias de Manuela de Azevedo. Jornalista, escritora, mulher de cultura, camoniana e da memória de Camões guardiã. Ou melhor comecei a ler, porque falta parte ainda. O livro chama-se Memória de uma Mulher de Letras.
Nota-se ali mágoa porque Etelvina Lopes de Almeida se deixara nomear para a Direcção da Modas e Bordados - que era um bastião de aculturação encapotada - quando Maria Lamas dali fora afastada por perseguição política; vê-se ali constrangimento porque Igrejas Caeiro se esquecia de contar quanto devera à intervenção de João de Barros, sogro de Marcelo Caetano, o seu regresso ao teatro do qual fora afastado, também por política, nota-se uma visão de quem soube construir certezas por cima dos desapontamentos.
O livro é graficamente muito bonito. Na escrita a autora repete-se, o que uma cuidada revisão poderia ter evitado. Mas seja. A vida também é isso, contarmos mais do que uma vez a nossa história.
São histórias de um Portugal que faz sorrir. Democrata, filha de um republicano perseguido pela «canarilha» que se juntou em torno de Afonso Costa, Manuela de Azevedo acabaria perseguida pelos que ocuparam o Diário de Notícias e procederam a injustos e ferozes saneamentos. Um deles dá pelo nome José Saramago. O falecido João Coito, chefe de redacção do jornal à época, chamava-lhe invariavelmente, «o erva daninha», recusando-se a citá-lo pelo nome próprio.