De repente salta-nos como familiar o mundo que não vivemos mas sabemos ter sido vivido. E que tantos viveram nas suas peles, os últimos dias do "mundo branco" em Angola. E o mundo de antes disso. O último instante do último avião da ponte aérea. A devastação raivosa para que nada fique que eles aproveitem, seja os camiões, e que se incendeiem com gasolina, ou a cadela, que se matará a tiro. Eles «os pretos».
Um livro de onde, de repente, nos salta, ofensiva, a verdade inconveniente de um Exército que já não faz a guerra e já não consegue defender a paz porque serviu um regime e fez uma revolução, onde «era bom que os soldados portugueses fossem antiputas, anticerveja e antiliamba».
E era tudo assim quando aquele dia deixou de ser aquele dia. O anseio de uma Metrópole que deveria ser seguramente um lugar pequeno e onde todos se encontrariam e encontraram.
Leio "O Retorno" de Dulce Maria Cardoso.
Li-lhe todos os livros e falei deles quase todos aqui. Adivinha-se pelo título que este é sobre retornados, o seu fantasma pessoal, a sua mundividência, ela que escreve com uma sabedoria que impressiona como se tivesse tido, prévias, mil vidas, como o senti ante "Os Meus Sentimentos", uma estupenda obra. Ela que vive reclusa num mundo em azul, qual mulher em ilha de faroleiro, ela cuja escrita é um longo sangrar como um caco de vidro cravado num pé, e com a hemorragia a sujar-se o leitor com a longa memória das feridas da alma que não resolveu.
Passei pela cerimónia do lançamento do livro. Para um abraço e para me refugiar no livro. Um magnífico livro. Depois direi mais. Agora quero continuar a lê-lo. Nasci em Angola. Ela escreve: «A nossa Angola acabou». Eu leio «A minha Angola nunca existiu». Sou um apátrida. E continua: «insistimos em pormenores insignificantes porque já começámos a esquecer-nos». Ambos.