sábado, 25 de fevereiro de 2012

A viuvez da alma

Quando fiz anos o meu Hugo ofereceu-me O Bibliófilo Aprendiz de Rubens Borba de Moraes, numa edição da Letra Livre, com um texto de apresentação do estudioso e erudito Pedro Teixeira da Mota. Ontem a minha Zé tinha à minha espera a surpresa de O Crime do Padre Amaro, que faltava na minha queirosiana e que teve o carinho de adquirir na edição crítica organizada por Helena Cidade Moura, e publicada pela Lello em 1964. Nela se compilam as três versões que o livro conheceu, a assassina descuidada e sem revisão de provas pelo autor, de 1875, a segunda, paga pelo pai de Eça de Queiroz porque o editor não arriscava e que ele prefaciou de um ignoto lugar que ali se diz chamar «Akenside Tewace», mas que é gralha porque se trata de Akenside Terrace, em Newcastle, onde Eça desempenhou funções de cônsul [como se pode ver aqui], e a terceira em que o criador do Conde de Abranhos se defende da vil acusação de que copiara para o livro a ideia se não o conteúdo do livro de Émile Zola, La Faute de l'Abbé Mouret.
Eis entre um livro e outro e uma gripe homicida que resolveu reduzir-me à insignificância do desprezível. 
«É aos psicanalistas que se deve perguntar porque se colecciona», escreve Borba de Moraes. Eu não colecciono, gosto de ler. Quando gosto sou insaciável no gostar. É uma viuvez da alma não ser gostado.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Uma vida aumentada

Talvez pudesse dizer em nome da sensatez do que não tenho que não podia, ou do escrúpulo do que não fiz que não devia, mas trouxe-o porque o título Trabalhos de Paixões de Fernando Assis Pacheco se sobrepõe à obra deste, a magnífica narrativa galega Trabalhos e Paixões de Benito Prada, cujo parágrafo de arranque me fulminou. É um livro bonito, como são todos os da Tinta da China, escrito por Nuno Costa Santos que o quis apenas como «crónica biográfica, talvez por pudor. E comecei a lê-lo, minado de tosse e moído de cansaço, mas leio e gostava de ser capaz de o terminar esta noite, assim não me vença o sono ou a morrinha
Não sei porque se escrevem biografias nem porque as leio, vivendo assim, sub-rogada, a vida alheia como se própria fosse. 
Jornalista, escritor, o jornalismo foi a sua profissão dominante, mas viveu-a como escritor, o refinamento da frase, a estrutura do contar. 
Parei na página setenta e seis. São dias difíceis em que um homem se não reconhece e procura-se em tudo quanto há, como nele, que aumentou a vida através do prazer de existir.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Vivamente apurado

Há muito que a procurava. Hoje na Livraria Almedina, do Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, encontrei-a, ou melhor, estava à minha espera. «Há que tempos que o não via, ainda está interessado nela?», perguntou-me solícito o empregado, amigo. Era verdade que «há que tempos» e verdade também que «ainda estava interessado». Nunca deixei de estar. 
Comecei a lê-la esta tarde, à biografia de Eça de Queirós escrita por Campos Matos. E a ler,  primeiro a esmo, começando pela sombra da perseguição dos problemas financeiros a que foi sujeito a vida inteira. «Vivamente apurado», no refogado dos apuros, as «atrapalhações de dinheiro» iam-no envelhecendo. Despesas acima dos ganhos, gastos desordenados. Um mês decorrido sobre a sua morte, um dos seus mais dedicados amigos, o Conde de Arnoso, escrevia ao director do Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, a implorar ajuda para a família, que, segundo ele, "havia ficado na mais negra miséria". A 21 de Maio de 1901 a Câmara dos Deputados aprovava uma pensão para a viúva [como vem relatado aqui]. Esta «viria a ser anulada pelo governo da República, devido ao facto de dois filhos de Eça terem participado nas incursões monárquicas do Norte de Portugal em 1912», como confirmei aqui
Vergonha.