Tarde de sábado, livraria cheia, corropio escada abaixo, escada acima, um mundo de com licença, desculpe. Muitos estrangeiros, uma brasileira embevecida com um álbum sobre os "príncipes de Portugal", um espanhol em busca do «senhor Pessoa».
Fui ali porque me lembrei que talvez tivessem algum livro da Dalila Lello Pereira da Costa. Não porque eu não julgue tê-los quase todos, mas porque há sempre algo que falha quando amamos um autor e ele nos retribui com uma obra numerosa. Da última vez que lá estivera remeteram-me para o andar de cima, onde, entre trastes de adelo sem interesse, sem nexo nem arranjo, ali estava um opúsculo seu, que afinal eu já tinha.
Mas fui, uma vez mais, na ingénua suposição que sendo uma autora «da casa», tivessem organizado ali, pois que recentemente falecida, algum pequeno pecúlio com o que de essencial ela escreveu, ou talvez tivesse surgido uma daquelas colectâneas de homenagem, mesmo que seja a dos vivos a engalanar a vaidade com o terem conhecido, vagamente que seja, o morto escritor.
Mas não tive tempo de apurar. No burburinho sabático, enquanto eu vasculhava, já desanimado, pelas terras do nada que interesse, um berro surgiu, vindo dos fundos do andar superior, lançado, qual tiro de caçadeira, rumo ao magote pequeno onde eu me ajuntava, já em recta descendente. Alguém, ó deuses, tinha tirado uma fotografia!
Atarantado naquele matagal de livros inúteis, atingindo pela chumbada generalizadora do "guarda-florestal" ainda levantei, hesitante, qual coelho pascal assustadiço, as orelhas alçadas, o dedo num «eu?» inquiridor, tímido, já porque no instante estava de facto de telefone na mão, apontando um número, e vá lá saber-se quando, apanhado em comprometedora ambiguidade, se passa de suspeito a réu.
Com o seu estilo agreste e sem se levantar do lugar de onde policiava o piso, o zelador livresco anti-imagético, ainda com a mão em riste, ondulante qual ofídeo, apartava entre os atónitos circunstantes, a sua vítima, resolvendo-se num «não não, aquela senhora ali, que eu bem vi disparar o flash».
Foi então que urdiu a fuzilaria argumentativa: é que não se podiam tirar fotografias e que mais isto e tanto aquilo que, na retaliação possível, deixei os dois livros que já trazia comigo cuidadosamente numa estante ao lado de uma rima de coisa nenhuma sobre horticultura e outras utilidades passíveis de roedura. Fique com eles quem trata leitores assim!
Ali ficou um Pitigrilli e um José Augusto França. Este sobre os anos vinte, os do fascismo, aquele sobre os paradoxos. A propósito.
A contenda passou para o andar de baixo, agora com o dono da casa a intervir. A pobre cliente, que afinal não tirara fotografias, enchia-se de desculpas. Quanto ao modo brutamontes como o assunto havia sido tratado nem palavra de jeito. Para quê?
Rematou tudo com o patrão, à porta da rua, irado, também de dedo em pistola, dando ainda lições de moral, na base do «se houve erro, todos erramos».
Subia-se a rua e ainda se ouvia o sujeito vociferar o «eu erro, tu erras, ele erra..». Mestre escola de si mesmo, vinte valores em gramática, zero em educação cívica.
Que pena tenha sido assim. Neste dia, naquele lugar.